Revista MB Recomenda

Olodango

Por Daniel Brazil - 03/04/2007

Neuza Pinheiro

Música tem dessas coisas. De repente, um grupo de jovens, com idéias estéticas ainda em formação mas com vontade de realizar, se reúne e monta um espetáculo. Podem ser moradores de Liverpool, San Francisco, Salvador ou Londrina. E o negócio dá certo, é aplaudido, gera frutos. Em pouco tempo estão tocando em outros lugares, criando admiradores, conquistando espaço na crítica ou na mídia. Uns partem para carreira solo, outros criam e mantém fortes vínculos entre si, alguns se desgarram e tomam outro rumo.

Podíamos estar falando dos Beatles, das bandas hippies da Califórnia ou dos tropicalistas. Mas aqui o foco é mesmo Londrina, na década de 1970. Mais exatamente em 73, quando o espetáculo Na Boca do Bode foi montado, juntando pela primeira vez no palco gente como Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Robinson Borba, Edvaldo Viecelli, A. C. Tonelli, Neuza Pinheiro e outros. Muitos desses acabaram emigrando e se incorporando à geração Lira Paulistana, que definiu a chamada vanguarda musical paulista na virada dos anos 80.

Esta história está contada no livro Na Boca do Bode: Entidades Musicais em Trânsito, de Fábio Henriques Giorgio (Atrito Art, 2006), que acaba de ser lançado. Mas o que nos importa aqui é o curioso trabalho de Neuza Pinheiro, cantora e compositora que demorou vários anos para lançar seu disco-solo, Olodango.

Primeira intérprete de Arrigo Barnabé, ainda em Londrina, Neuza apareceu para a grande mídia em 1979, como uma das vozes da Banda Sabor de Veneno, na premiada interpretação de “Diversões Eletrônicas”, no Festival Universitário da TV Cultura. Fez coro para Arrigo e Itamar Assumpção ao lado de vozes que logo alçaram vôo próprio, como Vânia Bastos, Suzana Sales, Tetê Espíndola, e Eliete Negreiros, entre outras.

Dona de timbre raro e extensão invejável, a mezzo-soprano Neuza emerge como compositora densa, de temas angustiados e letras cheias de mistério. Ora parece uma cantora de rock gótico dos anos 80, ora uma “cantatriz” de versos quase surrealistas, sublinhados por melodias que passam longe do lugar comum. O trabalho admirável de dois irmãos, Angelo (violões e guitarras) e Luciano Galbiati (bateria), é co-responsável pela sonoridade do disco, que conta com várias participações.

Neuza compôs dez das doze faixas do CD, ora sozinha, ora com parceiros como Arnaldo Antunes. Nas duas restantes, homenageia velhos e novos companheiros de viagem: Arrigo, com a valsa Londrina em versão ao vivo, e uma composição dos irmãos Galbiati.

Aqui e ali se nota a influência de Itamar ou de Leminski na construção poética de Neuza, mas retrabalhada de forma bastante pessoal. Como a araponga da canção “Ara, Meu Amor”, a artista “metalurge a dor na garganta”, trilhando caminhos pouco explorados pela moderna música brasileira. Não é um disco de fácil audição, mas revela o talento lunar de Neuza Pinheiro, por tanto tempo eclipsada pelas figuras solares com quem conviveu.