Perfil

Wilson das Neves: o som sagrado

Por Julio Cesar de Barros* - 21/10/2010

(* Veja.com/Blog Passarela)

O baterista, compositor e cantor Wilson das Neves, está em plena forma e dá lição de suingue no CD Pra Gente Fazer Mais Um Samba, no qual reúne um grupo de instrumentistas de primeira linha para dar sequência à sua tardia, porém brilhante, carreira de cantor. Carreira que começou em 1996, com o CD O Som Sagrado de Wilson das Neves e seguiu em 2004 com Brasão de Orfeu. Neste terceiro disco ele retoma sua parceria mais constante, com Paulo Cesar Pinheiro, e outras mais escassas, mas não menos brilhantes, com Nei Lopes e Délcio Carvalho, e adiciona novas, como o baiano Nelson Rufino e o pagodeiro carioca Arlindo Cruz. Wilson das Neves nasceu com a baqueta nas mãos no Rio de Janeiro, em junho de 1936. Aos 14 anos ele já batucava na Escola Flor do Ritmo, no subúrbio carioca do Méier, e aos 21 anos assumiu o comando da baterista na Orquestra de Permínio Gonçalves, sob cuja batuta grandes nomes da MPB, como Leny Andrade, deram o pontapé inicial na carreira. Atuando profissionalmente desde a década de 1950, ele se destacou tocando em shows e gravações para os principais nomes da MPB, como Elza Soares, Chico Buarque, Elizeth Cardoso, Wilson Simonal, Roberto Carlos e Ataulfo Alves, e ganhou prestígio, tornando-se o preferido de dez entre dez estrelas da nossa música, que passaram a tê-lo como referência em matéria de ritmo.

Nos anos 60, ele foi contratado da Rádio Nacional e da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Tocou com o organista e compositor Steve Bernard, em 1963, fez parte da Orquestra de Astor Silva (1964), e integrou o famoso conjunto de Ed Lincoln (1965). Integrou, ainda, a partir dos anos 60, as orquestras da TV Globo, da TV Excelsior de São Paulo e da Orquestra do Maestro Cipó, na TV Tupi de São Paulo. Em 1964 ele formou com o guitarrista Neco a banda Os Ipanemas, que era composta ainda por Astor Silva, no trombone, Marinho, no baixo, e Rubens Bassini, na percussão. A banda fazia uma fusão de jazz, samba e bossa nova. O grupo lançou só um LP, pela CBS, nos anos 60, intitulado Os Ipanemas (1964). Essa banda foi reestruturada em 2001 e lançou seis CDs no exterior, nessa nova fase (veja a discografia abaixo). No final da década ele criou outra banda cujo som suingado convidava para dançar. A estréia se deu com o LP Juventude 2000 (1968), reunindo músicas em versões bem balançadas de Tom Jobim (Waves), Baden Powell e Vinícius (Tem Dó), Osmar Milito (João Belo) e até o clássico Goin’ Out of My Head (Teddy Randazzo e Bobby Weinstein) e O Amor Está Pra Nascer, canção de Wanderley Cardoso e Cláudio Fontana, dois ídolos da Jovem Guarda, que ganha um toque de bossa nova. Nesse disco, piano e tamborim esmerilham em Domingo no Parque, de Gilberto Gil. No mesmo ano dividiu os louros com a rainha do suingue no disco Elza Soares – Baterista: Wilson das Neves, pela Odeon. No ano seguinte, tirou a mesinha do centro da sala e botou o som na vitrola para a rapaziada dançar novamente com Som Quente é o das Neves (Polydor), disco marcado por um sambalanço quase funky com sotaques de jazz e bossa nova.

Em 1970, deu sequência a esse trabalho com Samba-Tropi (Elenco/Philips), novo disco instrumental em que Neves e seu conjunto animam o baile com músicas que vão de Chico Buarque e Jorge Ben a Bacharach a Paul McCartney. Em 1976 lançou pela Underground/Copacabana O Som Quente é o das Neves (não confundir com disco de mesmo nome, porém, sem o artigo definido masculino, de 1969). A partir daí Wilson das Neves dedicou-se quase que exclusivamente aos shows e gravações com artistas do primeiro time e à noite, deixando de lado a carreira solo, que só seria retomada para valer nos anos 90. Em 1995, o primeiro CD para cantando, com parcerias que enobreceram suas composições e com participações preciosas: O Som Sagrado de Wilson das Neves. Nesse disco, em que homenageia o grande Ciro Monteiro, ele exibe suas qualidades de cantor e arrisca-se com grande sucesso na carreira de compositor, assinando treze faixas com Paulo César Pinheiro e uma Chico Buarque (Grande Hotel). O disco lhe valeu um prêmio Sharp de música. Esse talento exibido com abundância, se reproduziu no disco Coisa de Chefe (2001), do violonista Cláudio Jorge, que gravou dois os sambas em parceria com Wilson: E o Vento Levou e O que É Carnaval.

Em 2001, ele teve participação destacada em Nome sagrado – Beth Carvalho canta Nelson Cavaquinho (Jam Music), em que transcende as baquetas e emposta a voz na faixa Degraus da Vida. Estava na hora de um novo disco e, oito anos depois do primeiro CD, ele voltou à cena com Brasão de Orfeu (2004, Acari Records/Biscoito Fino), disco no qual canta parcerias suas com grandes letristas, entre eles, novamente, P. C. Pinheiro, que assina a faixa título e A Divina, uma homenagem a Elizeth Cardoso, além de outras seis faixas. É um disco bem cuidado em que ele homenageia também sua escola de coração, a verde e branco de Madureira, na faixa Imperial, parceria com Aldir Blanc. Destacam-se no CD, ainda, Lupiciniana (com Nei Lopes), que relembra o gaúcho Lupicínio Rodrigues, Muito Longe, com Délcio Carvalho, Enganos, com Ivor Lancellott e Fonte de Prazer, com Cláudio Jorge. Em 2006, Wilson participou da Orquestra Imperial, que gravou o disco Carnaval Só Ano Que Vem.

Na faixa título do novo disco, o trombone generoso de Vitor Santos abre para a entrada serena de Das Neves cantando com “gosto de orvalho” uma “doce lembrança”. O violão delicado de Cláudio Jorge sustenta o pagode (carioca) de Arlindo Cruz em Não Dá. Em Outono Chegou, um samba tradicional, João Carlos Rebouças faz contratempos sutis ao piano. E segue o laser, lendo sambas cantados com a sobriedade do interprete que brinca com a divisão em meio a um instrumental de bases limpas e passagens arrojadas. Quando toca Estava Faltando Você, que retoma a parceria com Délcio Carvalho (o eterno parceiro de Dona Ivone Lara), o violão de Cláudio Jorge e a flauta de Zé Bigorna seguem uma bateria que faz justiça ao mestre, nas baquetas de André Tandeta. O piano de Rebouças é a cereja do bolo. Das Neves é doce, mas não é mole não. Sob seu venerável talento, até Nelson Rufino aposenta a levada baiana e se curva ao arranjo cool de Minha Trajetória. Em se tratando de Wilson das Neves, o verde da esperança e o branco da paz não podiam faltar, também nesse disco. E não faltam, na poesia de Velha Guarda do Império, um samba que honra a tradição da Serrinha de Silas de Oliveira, Mano Décio, Mestre Fuleiro e Jorginho Peçanha. A apresentação, de Chico Buarque, é precisa: “Este disco nos traz de volta o grande melodista que é Wilson das Neves. Escutei-o seguidamente com deleite, com um sorriso, com um ciúme danado dos seus parceiros”, escreveu Chico, dando idéia a ser considerada por mestre Wilson: que tal retomar a parceria que estreou em 1996 com Grande Hotel?