Perfil

Paulinho da Viola

Por Fernando Toledo - 15/08/2003

Paulinho da Viola, seu tempo é hoje

Se ao menos me fosse concedido um prazo para terminar minha obra, eu não deixaria de lhe imprimir o cunho desse Tempo cuja noção se me impunha hoje, com tamanho vigor, e, ao risco de fazê-los parecer seres monstruosos, mostraria os homens ocupando no Tempo um lugar muito mais considerável do que o tão restrito a eles reservado no espaço, um lugar, ao contrário, desmesurado, pois, à semelhança de gigantes, tocam simultaneamente, imersos nos anos, todas as épocas de suas vidas, tão distantes – entre os quais tantos dias cabem – no Tempo. (Marcel Proust – O Tempo Redescoberto)

A obra-prima de Proust (os sete volumes da À Procura do Tempo Perdido) é uma imensa ode não apenas a uma redescoberta do Passado, mas acerca da persistência do mesmo e da Natureza desta mesma persistência: o personagem principal (apresentado como “o Narrador”) ao mordiscar um biscoito do tipo madeleine e lembrar-se de quando sentira a mesma sensação, é acometido por uma epifania que o faz buscar uma compreensão total de seu passado e do passado dos que o rodeiam, para constatar, ao longo do processo, que o passado que vive nele é transmutado por meio de seu olhar de artista – enfim, depara-se com a percepção da própria Natureza das obras de Arte.

Paulinho da Viola opera da mesma forma: sua obra é um olhar penetrante e contudo lânguido para o passado, seja o seu próprio ou o da Arte que pratica, filtrado pelas lentes de seu Presente, do qual não abre mão em hipótese alguma. Percebe-se nas composições de Paulinho um apelo ao elementos primordiais do samba e do choro, elementos estes que ganham, em suas mãos, a estatura de bisturis capazes de dissecar o Homem em seus aspectos mais complexos; de, como em Proust, revirar seu lodo íntimo e trazer, como moedas de ouro no cofre de um galeão naufragado (para usar uma imagem ligada ao mar, tema tão freqüente em suas composições), todo o seu mundo à tona. Exemplos claros disso são sambas como Roendo as unhas, Comprimido, Dança da Solidão, Coisas do mundo, minha nega, em que coisas diminutas, fragmentos de pequenos nadas, daqueles que nos passam desapercebidos devido ao turbilhão de informações em que vivemos, adquirem sua real estatura, num exercício de síntese capaz de apresentar o profundo entendimento de sua complexidade por meio de canções populares, que qualquer um seria capaz de assobiar.

Pois Paulinho é isto: um Proust do samba, expressando-se com as ferramentas que este último lhe proporciona. E ferramenta é um quesito de que Paulinho entende.

O filme Paulinho da Viola – Meu Tempo é Hoje, de Izabel Jaguaribe, é uma obra serena, como sereno é seu tema: inicia-se com um chamamento, Bebadosamba, em que o compositor evoca os nomes que compõem seu Passado musical – como verbetes de enciclopédia, nomes de bambas de diversas escolas são convidados a integrar sua obra. E, pela qualidade das músicas de Paulinho, torna-se fácil atestar que prontamente atenderam.

A película prossegue com a imagem de um Paulinho da Viola tranqüilo, caminhando pelas ruas cariocas. Visita a Livraria Elizart, célebre por abrigar uma seção de obras especializadas no Rio Antigo. Entra em diversas lojas de ferramentas e peças de reposição. E assim somos apresentados a uma faceta não muito conhecida de Paulinho, mas que explica muito acerca de sua motivações: sua paixão por consertos, sejam eles de relógios, de poltronas, de carros antigos (possui, em seu sítio uma frota dos mesmos, que promete que vai pôr nas ruas “em breve” – breve este já adiado há algum tempo). É, segundo ele, o que lhe dá algum sentido de ordem, o que o faz pisar no chão. Ao mesmo tempo, declara que sua maior ambição é ter Tempo para não fazer absolutamente nada, apenas se entregar a uma contemplação sem objetivo concreto.

Esses pequenos instantâneos de Paulo César de Faria são entremeados por números musicais. A Velha Guarda de sua querida Portela executa canções e faz depoimentos. Como é dito: Paulinho é o padrinho do conjunto, mas quem pede a benção é ele, a eles – um exemplo da reverência deste mestre para com os seus próprios.

Outro número musical comovente é o encontro de três gerações: seu pai César de Faria, seu filho João e ele mesmo, executando um choro. Seu César não se contém e deixa caírem as lágrimas. Logo ele que, como diz Paulinho, em “Catorze Anos”: “Perguntou-me se eu queria/ Estudar Filosofia/ Medicina ou Engenharia/ Tinha eu que ser doutor”. Mas, como se sabe, a sua aspiração “Era ter um violão/ para me tornar sambista”. E provou que sambista, apesar dos pesares de ordem financeira, tem valor nesta terra de doutor.

E no que reside o supremo valor de Paulo César de Faria? O de ser um homem gentil, carinhoso, educado e elegante até a raiz azul e branca de seus ossos? O de ser um artista único, capaz de unir, sem maiores atritos ou contradições, toda uma carga de passado e presente, aprimorando a cada dia este último? Sim, tudo isto, e também o fato ter a consciência de que a obra de Arte não é capaz apenas de captar o presente, mas sim de modificá-lo, de atuar no mesmo de maneira marcante, sem a necessidade de pirotecnias: um consertador, em última análise. E dos bons.