Perfil

Nelson Sargento: memória viva do samba carioca

Por Julio Cesar de Barros - 03/08/2010

(Veja.com / Blog Passarela)

Nelson Sargento é do tempo da zagaia. Do tempo em que se amarrava cahorro com linguiça. Mas ele está na moda. Mais atual que nunca. Dono de uma memória invejável, ele relembra histórias esquecidas e sambas perdidos. Chegou a resgatar alguns de Cartola. Fonte permanente de consultas para a elaboração de reportagens, livros ou filmes, Sargento é a memória viva do samba carioca e do morro da Mangueira. Disponível a quantos o procuram, ele é o rei da simpatia. Otimista, feliz, nunca nega um sorriso a quem dele se aproxima (mesmo quando andava desfalcado do teclado, abria aquele sorriso, de escassos dentes, de quem está de bem com a vida). Nelson (Mattos) Sargento, nasceu na Praça XV, no centro do Rio de Janeiro, no dia 25 de julho de 1924, e ganhou o apelido quando serviu o Exército, nos anos 40. Aos 8 anos de idade já desfilava tocando tamborim na Escola de Samba Azul e Branco do morro do Salgueiro, onde morava. Quando sua mãe, viúva, juntou-se ao marinheiro mercante Alfredo Lourenço, o Alfredo Português, ele foi morar no aglomerado de Santo Antonio, no morro da Mangueira. Tinha 12 anos de idade. Cresceu vendo os ensaios do samba e ouvindo as composições de Cartola e Nelson Cavaquinho, que lhe ensinaram a tocar o violão. Logo virou parceiro do padrasto, que era letrista respeitado no morro e passou a escrever suas poesias para o rapaz musicar. Em 1947, quando Nelson estava com 23 anos, Alfredo passou a integrar a ala de compositores da Mangueira e o enteado foi junto. Da parceria com Alfredo saíram Vale do São Francisco, samba-enredo de 1948, Samba do operário (com participação de Cartola) e Freira mais querida (isso mesmo, uma homenagem a alguma freira, com a parceria de Nelson Cavaquinho). A dupla venceria o concurso de samba enredo da escola em 1949 (Apologia ao Mestre) e 1950 (Plano Salte – Saúde, Lavoura, Transporte e Educação), garantindo o título de bi-campeã para a verde e rosa no Carnaval. A escola foi vice-campeã em 1955 com Cântico à natureza (enredo: “As quatro estações do ano”), uma parceria da dupla com Jamelão, cujo refrão marcante dizia:

Oh! Primavera adorada
Inspiradora de amores
Oh! Primavera idolatrada
Sublime estação das flores

O samba é considerado até hoje o melhor da escola em todos os tempos. Com o impulso de seu sucesso no Carnaval, Sargento passou a fazer parcerias com outros grandes nomes da nossa música. Além de Alfredo Português, Cartola, Jamelão e Nelson Cavaquinho, ele fez sambas com Guilherme de Brito, Ivone Lara, Nei Lopes, Jair do Cavaquinho, Darcy da Mangueira e João de Aquino. Gravado por Chico Buarque e Beth Carvalho, entre outros, seu samba Agoniza mas não morre virou um clássico do gênero. Falso amor sincero revela o lado satírico do autor:

O nosso amor é tão bonito
Ela finge que me ama
E eu finjo que acredito

Esse tipo de humor é presente ao longo da obra do compositor, que é capaz de cantar versos do mais puro nonsense, como esses, que fez com Andinho Golçalves:

Fui fazer o meu samba
Na mesa de um botequim
Depois de umas e outras
O samba ficou assim
Estrambonático, palipopético
Cilalenítico, estapafúrdico
Protopológico, antropofágico
Presolopépipo, atroverático
Batunitétrico, pratofinandolo
Calotolético, caranbolambolu
Posolométrico, pratofilônica
Protopolágico, canecalônica
É isso aí, é isso aí
Ninguém entendeu nada
Eu também não entendi

Os anos 60 foram encontrar Sargento tocando no grupo que animava o lendário Zicartola, o restaurante de Dona Zica e Cartola, que virou ponto de encontro de sambistas e intelectuais, na rua da Carioca, 53, centro do Rio. Mas a carreira profissional de Nelson Sargento deslanchou quando participou do show Rosas de Ouro, dirigido por Hermínio Bello de Carvalho, em 1965, com a participação de Elton Medeiros, Paulinho da Viola, Jair do Cavaquinho, Anescarzinho do Salgueiro, Clementina de Jesus e Aracy Cortes. Do show saíram dois LPs, já lançados em CD. Integrou, depois, o grupo Voz do Morro -- do qual participavam Paulinho da Viola, Zé Kéti, Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, José da Cruz e Anescarzinho do Salgueiro - que gravou três LPs, dois em 1965 e um em 1966, todos já lançados em CD. Sargento participou dos dois últimos. Fez parte ainda de Os Cinco Crioulos, composto por alguns sambistas do Rosa de Ouro e do Voz do Morro, aos quais se juntou o compositor Mauro Duarte. Entre 1967 e 1969 o novo grupo gravou três álbuns. Deste grupo faziam parte, além de Mauro Duarte e Nelson Sargento, Anescarzinho, Elton Medeiros e Jair do Cavaquinho. Em 1979, o selo Eldorado gravou o primeiro disco solo de Sargento, Sonho de um sambista. Seguiram-se mais oito discos de carreira e várias coletâneas (veja a discografia abaixo). Depois de velho, ele, que na juventude foi pintor de paredes, começou uma nova carreira, a de pintor de quadros, com relativo sucesso. Afinal, independentemente do valor artístico, quem não gostaria de ter uma tela do Sargento? Mas o sambista não faz feio com os pincéis. Porém, é o compositor quem se destaca. O reconhecimento ao seu valor veio na forma de diversas homenagens. Moacyr Luz e Aldir Blanc compuseram Flores em vida, no qual os versos exaltam:

Sargento apenas no apelido
Guerreiro negro dos Palmares
Nelson é o Mestre-Sala dos mares
Singrando as águas da Baía

A música deu nome ao disco de 2002, indicado para o prêmio Grammy de melhor álbum de samba. O cineasta Estêvão Pantoja dirigiu o documentário Nelson Sargento da Mangueira (1997), premiado no VIII Festival de Curtas-Metragens de São Paulo e ganhador de um kikito, no Festival de Cinema de Gramado. No Rio Cine de 1997, o filme ganhou outros prêmios: Melhor Montagem, Prêmio Especial da Crítica e Prêmio Especial do Júri. No documentário, ele relembra os 40 anos que viveu na colina, os sambas que compôs para a escola cantar e suas poesias exaltando o lugar, como O encanto da paisagem, que dá título ao seu segundo disco solo:

Morro, és o encanto da paisagem
Suntuoso personagem de rudimentar beleza
Morro, progresso lento e primário
És imponente no cenário
Inspiração na natureza

Nelson também escreve. Ele é autor dos livros Prisioneiro do Mundo (poemas, 1994), O samba e eu (contos, 2003) e Pensamentos (ensaios, 2008). É ainda co-autor de uma biografia de Geraldo Pereira (Um certo Geraldo Pereira, Funarte, 1983).