Perfil

Jards Macalé

Por Fernando Toledo - 03/10/2003

A obra em progresso

Final dos anos 60: a Contracultura começava a se estabelecer como Cultura, ou seja, a integrar o saber intrínseco de grupos de seres humanos. Um tipo de atitude pretendida, em caráter individual, pelos expressionistas (que chegavam a fabricar as próprias tintas), surrealistas e beatniks (Burroughs, Ferlinghetti, Kerouac e Ginsberg – principalmente este último), expressava-se de maneira coletiva, como nas manifestações hippies ao longo de todo o mundo, tomadas de posição política radical e explosões de imaginação como o Maio de 68. Infelizmente, o Grande Sistema, Grande Esperto que é, conseguiu vislumbrar, antes dos ripongas pelados em Woodstock, a grande brecha que havia no movimento: a fragilidade de seus membros enquanto indivíduos, a ausência de um propósito definido em seus conjuntos de atos. Desta forma, o que se pretendia revolucionário acabou por tornar-se apenas rebelde, tendo sido praticamente levado (e, notem bem, não elevado) à categoria de carne-de-vaca, sob a forma de lojas vendendo jeans pré-desbotados e incensos de griffe.

No mundo inteiro, artistas, durante este período, promoveram rupturas com regras vigentes, tendo sido a Música Popular um dos veículos mais importantes para as mesmas. No Brasil, várias frentes se digladiavam: o samba tradicional, a bossa-nova e a Jovem Guarda, esta um reles pastiche de roquenrous incipientes, música de resultados pífios e musicalmente insignificantes. No final dos 60, porém, uma nova forma de fazer música iria resgatar o passado, estabelecer um presente e apontar um futuro, agregando todas as soluções e contradições dos gêneros anteriormente citados, além de outros como o xote, o baião, a modinha, as músicas de cabaré: a Tropicália, uma seleção de músicos de primeira, capaz de unir de Vicente Celestino a Jimi Hendrix, passando por Luiz Gonzaga e Carmen Miranda, pelos impressionistas e os concretos, num fulgor de claridade poucas vezes presenciado, em um período tão curto, na música de um País. Causaram vaias, aplausos, alguns foram presos, um se suicidou (Torquato Neto). Dois deles, pelo menos, não podem ser citados exatamente pela sua coerência: Gil e Caetano, que alternam obras geniais com momentos de jeans stone-washed, como referido acima. Mas um seu contemporâneo mantém a coerência, sua busca pelo absolutamente novo sem o abandono de referências passadas: Jards Macalé.

Macalé, carioca da Tijuca, sempre surpreendeu pela sua forma peculiar de tratar a Música: gravou sambas ancestrais, compôs rocks demolidores, enveredou pelo minimalismo em algumas das suas obras, sem perder a qualidade e a capacidade de renovar-se a cada trabalho. Poderia ser chamado de camaleão, pois apesar de se apresentar com uma nova roupagem a cada vez que surge, sua essência permanece a mesma, a de artista que parte da idéia de que criar é arriscar-se, a cada dia, em novos caminhos, guiado pelo senso estético que lhe é inerente. Para exemplificar seu talento e versatilidade, basta checar as intérpretes de duas de suas primeiras composições: Elizeth Cardoso (Meu mundo é seu, em parceria com Roberto Nascimento) e Nara Leão (Amo tanto).

Sua participação no movimento tropicalista nunca foi na linha de frente: apesar de beneficiado pelas conquistas do movimento, sua música era pessoal e intransferível demais para ser classificada de alguma forma. Obcecado com a forma de sua música, não se deixou levar pelo auto-didatismo característico do roquenrou e tratou de tornar-se aluno de mestres como Guerra Peixe, Turíbio Santos e Ester Scliar. Disto resultou, além de um criador ímpar, um ótimo violonista.

Em 1969, após ter assimilado as experiências promovidas pelo Psicodelismo, apresenta-se no IV Festival Internacional da Canção, interpretando sua parceria com Capinam, Gotham City, cuja letra (Aos quinze anos eu nasci em Gotham City/ Era um céu alaranjado em Gotham City/ Caçavam bruxas no telhado em Gotham City/ No dia da independência nacional/ Cuidado!”), alusiva a um tipo de arquitetura urbana que florescia num período ditatorial (como que antevendo os anos do milagre) foi incompreendida pela platéia. Vaiado em uníssono, Macalé ganhou, para sempre, o rótulo de “maldito”. E não fez por menos: ao lado de Wally Salomão (à época, Sailormoon) compôs Revendo Amigos, cuja letra (Se me der na veneta eu vou/ Se me der na veneta eu mato/ se me der na veneta eu morro/ E volto pra curtir) teve de ser refeita várias vezes, por conta da censura. E, claro, o hino da desilusão com o torrão natal (tão perene que chegou a ser usada como trilha para o filme Terra Estrangeira, na década de 90, que retratava outro tipo de desilusão em relação ao mesmo torrão), Vapor Barato, imortalizada por Gal Costa em seu show Fa-Tal.

Em seu primeiro disco, de 1972, Jards Macalé, constam, além de Revendo Amigos, clássicos como Hotel das Estrelas (com letra minimalista de seu parceiro Duda) e Meu amor me agarra & geme & treme & chora & mata (com letra de estilo beatnik de Capinam). A seguir, um trabalho arriscado, em plenos Anos de Chumbo: o espetáculo e o disco duplo O Banquete dos Mendigos, com chancela da ONU, no 25° aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Macalé assume a direção geral e a coordenação artística do projeto, que reuniu Paulinho da Viola, Edu Lobo, Raul Seixas, Chico Buarque, MPB4, Luiz Melodia, Gal Costa, Johnny Alf e outros. Um time de feras, num disco que acabou censurado.

Em 74, lançou Aprender a nadar, que reúne de Paulo da Portela, na mítica Pam Pam Pam a Anjo Exterminado, referência – em letra de Wally – a outra de suas grandes paixões, o cinema, no caso, Buñuel. Esta paixão de infância já era exercitada desde 1968, quando fizera a trilha sonora de Macunaíma (de Joaquim Pedro de Andrade). A partir daí, várias colaborações, como compositor, arranjador ou ator, se seguiram: O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (Gláuber Rocha), Rainha Diaba (Antônio Carlos Fontoura), O Amuleto de Ogum e Tenda dos Milagres (Nélson Pereira dos Santos), Se Segura Malandro (Hugo Carvana).

A carreira de Macalé ainda nos reserva, a cada esquina, um alumbramento, e um exemplo disso é seu trabalho de 1987: Quatro Batutas e um Coringa, em que atuou exclusivamente como intérprete, gravando maravilhas de quatro dos grandes gênios do samba: Paulinho da Viola, Lupicínio Rodrigues, Nélson Cavaquinho e Geraldo Pereira, tributo emocionado em que homenageia aqueles com quem considera ter dívidas de influência, um trabalho genial e reverente.

Outros discos foram lançados: Contraste, O Q eu Faço é Música, Let’s Play That. E, este ano, Amor, Ordem e Progresso, em que apresenta a proposta de adicionar a primeira expressão à expressão tão reducionista e positivista de nossa bandeira. Uma obra de gênio, dedicada a seu parceiro recentemente falecido, Wally Salomão, que regrava Meu amor me agarra & geme & treme & chora & mata, de seu primeiro disco, e une elementos de samba e bossa-nova à guitarra bluesística de Victor Biglione, sem descaracterizar contudo os dois primeiros, como tristemente vêm fazendo os adeptos da chamada world-music. Um disco universal que não deixa, um só instante, de ser brasileiro. Pois assim é, foi, e sempre será Macalé: com os pés em todos os solos, mas o coração de subúrbio que lhe permitirá sempre, ao fim do dia, botar as cadeiras na calçada, pedir uma cervejinha e falar, tocar e cantar tudo que absolutamente lhe vier à telha. Sem medo ou remorsos.