Memória

A última entrevista de Kid Morengueira

Por Luís Pimentel - 19/03/2014

A última entrevista de Antônio Moreira da Silva, o Kid Morengueira, foi concedida à revista Música Brasileira, em maio do ano 2000, na casa do artista, bairro do Catumbi, Rio de Janeiro. Dois dias depois, Moreira levou um tombo dentro de casa e foi internado no Hospital dos Servidores do Estado. A saúde se complicou e ele morreu dia 6 de junho, de falência múltipla dos órgãos. Moreira da Silva completara 98 anos de idade (nasceu dia primeiro de abril de 1902) e continuava exercendo o seu ofício. Já não tinha a mesma limpidez na voz, mas ainda tinha coragem para cantar e não recusava convites para shows de média duração. No instante da entrevista, era o mais antigo cantor em atividade no mundo.
 

Não gravava há algum tempo, pois, a exemplo de outros grandes cantores brasileiros, deixara de interessar às gravadoras. Mas ainda era um patrimônio dos mais respeitáveis da nossa MPB, com mais de cem discos gravados. Filho de um trombonista da banda da Polícia Militar, Bernardino da Silva Paranhos, e de Poladina da Silva, Moreira teve infância dura e aos nove anos vendia doce nas ruas da Tijuca (morava no Morro do Salgueiro). Também entregou marmita nas imediações da Zona do Mangue (para onde a família se transferiu mais tarde).

Aos 19 anos já era amigo de cantores e compositores (entre eles, Ismael Silva, Marçal, Bide e Baiaco), freqüentava roda de malandros (conheceu Brancura, Manoel da Carretilha, Waldemar da Babilônia e João Cobra) e cantava em festas para amigos. Mas precisava de uma profissão que garantisse o futuro: tirou carteira de motorista e encarou o volante da ambulância da Assistência Municipal de Saúde, onde trabalhou por 12 anos. Em 1928 casou-se com Maria de Lourdes Lopes Moreira, Dona Mariazinha, que esteve ao seu lado por toda a vida, exatos 56 anos.
 

Por influência de Ismael Silva, gravou o primeiro disco, em 1931, com dois pontos de macumba compostos por Getúlio Marinho: Ererê e Rei de umbanda. No ano seguinte, conheceu pela primeira vez o sucesso, com a gravação de Arrasta a sandália (“Arrasta a sandália aí, morena/...Arrasta a sandália aí, no terreiro/Arrasta que custou o meu dinheiro”), de Benedito Lacerda, Aurélio Gomes e Baiaco. Entre as décadas de 1930 e 1960 Moreira gravou todos os seus grandes sucessos, que incluíam ainda Amigo urso e Fui a Paris (parcerias com Ribeiro Cunha), Dormi no molhado (assinado por ele, mas comprado do compositor Zé da Zilda por 150 mil réis, segundo declaração do próprio Moreira ao jornal O Pasquim), Conversa de camelô (T. Silva e S. Valença), Na subida do morro (vendida por Geraldo Pereira, como ele explica adiante), Jogo proibido (Tancredo Silva), onde, segundo ele, nasceu a improvisação rítmica que teria estimulado o samba de breque, além das épicas O rei do gatilho, O último dos moicanos, Os intocáveis, Moreira contra 007 e O seqüestro de Ringo, todas de Miguel Gustavo.
 

Alguns trechos da entrevista:
– Noventa e oito anos cravadinhos, hein, Morengueira?! E como está a saúde?
– Nos trinques. Pressão 12 por nove, colesterol de menino e coração a mil. Estou diabético, mas isso eu tiro de letra.
– Continua trabalhando?
– Fazendo meus showzinhos por aí. Ainda canto e canto bem. Se quiser um show do velho Morengueira, é só me chamar.
– Há quanto tempo você não grava?
– Muito tempo. As gravadoras têm preferido outras coisas. Tá cheio de cantorzinho por aí, cantando bonitinho, requebrando a bundinha.
– Procede a informação de que você é o mais antigo cantor em atividade no mundo?
– Em plena atividade. Sou o decano de todos eles!
– Você cantou muito e gravou bastante. Mas compôs pouco, não foi?
– Fiz uma coisinha ou outra. Composição nunca foi o meu forte.
– Já precisou vender samba?
– No começo, sim.
– Comprou também?
– Comprei, vendi, emprestei, negociei, entrei em parceria. Em certo período, isso era comum. Todo mundo vendia. O grande compositor Geraldo Pereira me vendeu um samba por um conto e trezentos.
– Foi o Na subida do morro?
– Foi. Depois dei forra, colocando o nome dele na parceria de Acertei no milhar, que era só do Wilson Batista.
– E seguidores? O Moreira vai deixar o bastão com alguém?
– Mais ou menos. Têm uns que tentam, mas modéstia à parte ninguém chega aos pés. Moreira é conhecido no mundo inteiro e já cantou em vários idiomas. Sabia que já cantei em francês?
– Sabia. E em alemão também, pelo menos duas palavras no Samba em Berlim, do Wilson Batista.
– Isso. Chucrute, Seu Fritz…
– Você foi muito namorador. E continua sendo?
– Elas que me namoravam. E até hoje eu continuo maltratando alguns corações. Outro dia mesmo uma moça olhou pra mim e disse “ganhei o dia”. Respondi: “eu também”. Mas hoje estou meio devagar. Se bem que, de vez em quando, vejo umas imagens na televisão e “o malandro ainda suspira”...
– Você mora em frente ao Cemitério do Catumbi (Bairro do Catumbi, no Rio de Janeiro). Uma vez você disse que isso era bom porque “qualquer coisa, era só atravessar a rua”...
– Mudei de idéia. Não quero mais ser enterrado. Já fui no cartório e registrei minha última vontade: quero ser cremado. Não vou dar moleza pra micróbio…

Do livro “Com esses eu vou – de A a Z, crônicas e perfis da MPB (Editora Zit)