Memória

Sidney Miller

Por Fernando Toledo e Áurea Alves - 03/05/2005

A TRISTEZA E A BELEZA

Nós, os foliões, somos dados ao esquecimento: imersos na velocidade do dia-a-dia, tendemos a não reparar nas pedrinhas que caem no lago e formam círculos concêntricos que se desvanecem como se não tivessem existido jamais. E por isso, provavelmente, não entendemos por que tais círculos haviam se formado. Por exemplo, não entendemos até hoje por que Sidney Miller se matou, em 1980.

Sidney Álvaro Miller Filho era membro de uma geração privilegiada, em termos de criação musical: nascido em 18/04/1945, há exatos 60 anos, foi contemporâneo de Chico Buarque, Caetano, Gil, Edu Lobo etc.: uma turma que apontaria para uma nova estética, e, mesmo, uma nova maneira de se encarar o fazer música no Brasil. Em tempos obscuros politicamente, ousaram acender fósforos que tentavam, pelo menos, quebrar a onipresença das trevas.

Sidney não era um iconoclasta como Caetano: em termos de música, estaria mais próximo de Chico, fazendo uma ponte entre um novo olhar e a herança musical e poética em seu sangue. Sua estréia fonográfica, em 1962 – o samba Queixa – , uma parceria com Zé Keti e Paulo Tiago, foi defendida por nada mais, nada menos, que o decano Cyro Monteiro. Foi o início de uma série de grandes composições, que pontilharam a Era dos Festivais de uma beleza melancólica, filosófica mesmo, que contrastava com a pirotecnia de certos artistas da época. Suas letras quilométricas (como na belíssima A estrada e o violeiro, que levou o prêmio de melhor letra no 3° Festival da Record) eram, mesmo, épicos existenciais, um retorno a uma era em que o prazer de se contar uma boa história se mesclava à reflexão sobre a natureza da mesma.

Um de seus clássicos, O circo (“Vai, vai, vai, começar a brincadeira/ Tem charanga tocando a noite inteira”) opera com o mecanismo dos contos de fada, buscando, no aparentemente ingênuo, toda uma série de arquétipos do ser humano, como o palhaço “que na vida já foi tudo”, e que “sem juízo fez feliz a todo mundo, mas no fundo não sabia que em seu rosto coloria todo o encanto do sorriso que seu povo não sorria.” Uma metáfora perfeita para a própria condição do artista criador.

Outras maravilhas podem ser citadas, como o samba Pede passagem, verdadeiro louvor ao ato de resistir às intempéries e seguir vivendo, e que se encerra com os versos: “Vai balança a bandeira colorida/ Pede passagem pra viver a vida”. Aparentemente, uma contradição em relação ao fim que escolheu.

Gravou, ele mesmo, apenas três discos. Mas intérpretes do estofo de Nara Leão (sua musa), Clara Nunes, Quarteto em Cy e Caetano, entre muitos, se renderam à beleza triste de suas composições. Um dia, contudo, a tristeza sobrepujou a beleza e Sidney, por motivos até hoje obscuros, optou por acabar com sua vida, e, conseqüentemente, com sua obra.

Restou somente a pergunta, presente nos versos finais de sua composição A praça: “Eu já cantei meu samba/ Quem vai cantar agora?”