Memória

Noel Rosa

Por Urariano Mota - 06/07/2004

Maio deveria ser o mais triste dos meses para os brasileiros. Maio deveria ser o mais triste dos meses porque nesse mês faleceu Noel Rosa.

Costuma-se dizer que Noel transformava a sua vida em samba. Isto consola. Nós, como todo filisteu, como todo bom pequeno-burguês, adoramos um artista sofrido, machucado, que cante para nós a sua dor. (Há uma foto de mulher, há uma foto de uma feiticeira, há uma foto da Dama do Cabaré que deve ter tantalizado Noel. Imaginamos o que ela escreveu no verso da imagem, se alguma vez lhe deixou alguma foto: “Como prova de amizade, Ceci”.) Então se diz que ele transformava a vida em samba, mas se esquece que nos intervalos da arte Noel evitava comer na frente dos admiradores. O queixo danificado mortificava-o, o seu mastigar era um espetáculo de animal de zoo. Ele, que já havia sido chamado, num duelo de sambas, de O Frankestein da Vila.

Se tentamos apanhar Noel a partir da maioria de suas letras, que diríamos, sem erro, quase sublimes, no limite da oração, da queixa de um homem a Deus, como em Último Desejo, diante de uma melodia que não podemos expressar em palavras, diante da expressão de tal sentimento, sempre novo, tão vivo e primordial que nos faz penetrar um cheiro de sal e mar pelo nariz, diríamos, que dor, que felicidade trágica na expressão! A impressão que Noel nos deixa, em seus versos mais cruéis, é que ele compõe epitáfios. Mas ele não compõe como um indivíduo póstumo, deveríamos dizer com mais precisão que ele pinta e canta enternecedores testamentos. E Último Desejo é uma expressão de última vontade bem ambígua. Para as pessoas amigas, a mulher deverá dizer que o adora, e lamenta e chora a separação. Mas para os inimigos ela deverá dizer que o seu lar foi um botequim, que ele arruinou a sua vida, e que é indigno do pão que ela pagou para ele. E aqui cabem duas observações. A primeira delas é que o patrimônio do poeta se faz em torno de coisas, como diríamos, intangíveis: bares que jamais possuiu, álcool bebido e sumido, amor que se foi, se alguma vez houve. Visto de um modo mais geral, as letras de Noel sempre exibem uma miséria material que não atinge o seu espírito. A miséria de bens tangíveis, materiais, não atinge a miséria humana A outra observação fala da ambigüidade dos seus rompimentos amorosos. Ações típicas de quem rompe pelo afastamento físico, mas não rompe no sentimento.

E nesta altura acrescentamos, ou melhor, o gênio de Noel acrescenta um precioso dado: em uma linha de um verso ele exprime uma vivência, uma observação fina. Por exemplo, quando ele compõe em Dama do Cabaré o verso “Você nela me dizia que quem é da boemia”, ele nos diz, para todos que já passamos noites e mais noites a beber: a gente dessas noitadas, pelo estilo de vida ou por vício, é leviana, dispersa, mentirosa, tão egoísta por fim quanto animais mimados, e por isso, “ não gosta de ninguém”. Ele é capaz de em linhas de versos impor uma reflexão que causa espanto aos preconceitos que acham alturas somente na tradição acadêmica, nas glórias institucionalizadas. “Não posso mudar minha massa de sangue”, para dizer que é suburbano, do lado marginalizado, por vocação, gosto, alma e destino.

Não tenho exata certeza se a partir de Noel, mas com certeza ele é um dos responsáveis pela projeção, pela individualização da letra na canção do Brasil. Com ele ganha corpo autônomo uma letra que só existia tão só e somente na música. A sua letra é capaz de nos elevar a um sentimento de beleza ainda que não conheçamos a sua melodia. Os estrangeiros, os não-brasileiros, que não têm a felicidade de conhecer Noel poderão com mais isenção dizer se há razão no que digo. Leiam Três Apitos.

O X do problema em Noel é que ele é um compositor popular com um pensamento, uma reflexão, que passa por cima de toda folclorização, de todo exotismo. Ele responde insofismável à superioridade com que a gente culta, educada, trata os estranhos a seu meio. Se por ambientes sofisticados passou, ele gostava mais dos ambientes marginalizados, dos malandros, e da negrada. Talvez com mais propriedade se diga que tendo todos os motivos para escrever os versos mais tristes, e tão-somente estes, ele não só os escreveu, como da tristeza e desgraça zombou. Ele, à sua maneira, bem fez o que recomendava Sartre: “Na vida importa mais o que fazemos do que nos fazem”.

No dia 5 de maio de 1937, um jornal do Rio pôs em manchete: “A morte prematura de Noel Rosa”. Hoje percebemos melhor que mais prematura que a sua morte, aos 26 anos de idade, mais prematura que a sua morte foi a sua vida entre nós brasileiros. Até hoje, em 2004, ainda não sabemos o que fazer diante da sua humanidade. Se assim não fosse, maio não teria passado tão triste, tão oculto. Sem nenhuma lembrança, sequer, de que num maio assim perdemos o nosso Frankestein brasileiro.