Memória

Luperce Miranda

Por Jorge Mello & Fernando Toledo - 24/08/2004

UM BANDOLIM PARA OS FUTUROS

Com agradecimentos a Ricardo Cravo Albin

Pode-se pensar o choro como uma síntese primordialmente instrumental de toda uma história brasileira, uma espécie de amálgama de todas as experiências que resultaram em um som verdadeiramente nacional, sem perder sua universalidade. No choro, as linguagens brasileiras passadas, presentes e, mesmo, futuras, entrecruzam-se, podendo-se mesmo afirmar ser uma demonstração musical do contínuo vir-a-ser de Heráclito: uma permanente obra em progresso.

Desde seus primórdios, o choro absorveu os melhores elementos do universo musical a seu redor, crescendo com isso e disseminando caminhos e opções para outros gêneros, mesmo os mais inesperados. Sendo tipicamente carioca, foi invadido de forma saudável por músicos de muitas outras partes do País, que colaborariam com a construção de sua face multitudinária, sendo talvez o único gênero brasileiro que possa chamara a si mesmo de Legião sem que um sorriso aflore dos interlocutores. Nele habitam o jazz, o ragtime, os lundus, as modinhas, e, mesmo, o seu filho mais dileto, o samba, sem que atritos que não os decorrentes do processo de criação produzam faíscas nocivas.

Luperce Miranda é um exemplo desse caráter múltiplo do choro: pernambucano, nascido no bairro dos Afogados, em Recife, no dia 28 de Julho de 1904, desde cedo teve a música sob a forma de companheira natural e inescapável. Seu pai era multinstrumentista – tocava bandolim, flauta e violão – e chegou mesmo a organizar uma orquestra caseira – como bom nordestino que era, tinha apenas onze filhos. Luperce, além de se relacionar muito bem com o violino, violão, piano, acordeon etc., se destacava ao bandolim, instrumento utilizado, à época, basicamente como acompanhamento – e lhe imprimiria outras feições, elevando-o à condição de solista, elemento-chave no choro. Curiosamente, iniciou sua carreira tocando música sertaneja, formato muitas vezes menosprezado e – por que não – subestimado – um exemplo crasso disto, e da interação dos diversos estilos a fim de gerar Música Popular Brasileira, está no fato de que Os Oito Batutas, grupo que viria a se constituir uma das linhas mestras do choro, ter começado como predominantemente sertanejo. Seu primeiro sucesso como compositor foi uma embolada, em parceria com Augusto Calheiros (gravada pelo próprio), intitulada Pinião, grande sucesso do Carnaval em 1928.

Luperce, graças a sua destreza ímpar, participou de grandes momentos da gênese fonográfica da Música Popular Brasileira: tocou com João Pernambuco, lendário violonista e especialista nas tradições nordestinas; com Jararaca e Ratinho, que viriam a se tornar a mais clássica dupla sertaneja de todos os tempos; participou dos Oito Turunas Pernambucanos; dos Turunas da Mauricéia; da primeira gravação a registrar de maneira satisfatória a percussão (Na Pavuna, com o Bando de Tangarás) – sempre exibindo uma técnica ímpar e conferindo a suas interpretações uma emoção incrível, o que contrariaria as opiniões, disseminadas por certas facções invejosas de que, ao contrário de seu ex-aluno Jacob do Bandolim – que negou até a morte tê-lo sido – , se valia apenas de técnica impecável, em detrimento da emoção.

Foi um músico inacreditável, que levou o bandolim a extremos nunca antes suspeitados; um homem simples, que abandonava periodicamente a música para se dedicar a sua outra grande paixão: perpetuar sua linhagem. Teve apenas dezoito filhos, o que lhe acarretaria sérios problemas financeiros no final da vida. Herdara certos aspectos do pai, com certeza.

Em 1977, Luperce morria. O bandolim, contudo, continua muito bem, obrigado: a cada dia, músicos como Hamilton de Holanda, Pedro Amorim, Déo Rian, Joel Nascimento, Marcos de Pinna e muitos outros fazem jus a seu legado, bebendo em sua fonte e adicionando novos elementos. Pois o choro nunca é: ele sempre será, e nas surpresas que este tempo de verbo nos prega reside toda a sua grandiosidade.