Memória

Ismael Silva

Por Luís Pimentel - 08/09/2004

Que coisa, hein?! Ismael Silva estaria agora fazendo 99 anos. Ele nasceu em Niterói, no comecinho do século passado (14 de setembro de 1905). Mas é filho legítimo do Estácio de Sá, bairro do Rio de Janeiro que hospedou grandes sambistas e onde nasceu, em 1928, a primeira escola de samba, a Deixa Falar, que desfilou nos carnavias de 29, 30 e 31. O Estácio, onde Ismael Silva chegou aos três anos de idade (após perder o pai, o operário Benjamim da Silva), no colo da mãe, a lavaderia Emília Correia Chaves, já era reduto da malandragem, da cultura negra e do samba carioca. Estava pertinho da Praça Onze; portanto, perto de Tia Ciata, de Donga, de João da Baiana, de Sinhô e de tantos bambas e ban-ban-bãs. Segundo o dramaturgo Hersch W. Basbaum, em texto para a História da Música Popular Brasileira (Abril Cultural), o Estácio nunca existiu. “O que existiu foi um bairro parecido com o Estácio e que, por acaso, chamava-se Estácio”.

Reconhecido pelos seus pares e por admiradores como um homem tranqüilo, sereno, bem-humorado e elegante, Ismal Silva não dispensava o terno branco sempre bem engomado, sobre camisa verde ou vermelha e lenço combinando no bolso do paletó. Ainda na adolescência começou a participar das famosas rodas de samba do Estácio, onde fez amizade com nomes importantes no bairro e mais tarde na MPB, como Bide (Alcebíades Barcelos), Marçal, Nilton Bastos (mais tarde parceiro em sambas memoráveis), Gradim (Lauro dos Santos), Oswaldo Vasques, Baiaco e Rubem Barcelos (irmão de Bide). Esses eram os príncipes do samba que reinavam no Estácio, assim como Noel Rosa (parceiro de Ismael em sete músicas, incluindo aí pelo menos três momentos marcantes: Para me livrar do mal, A razão dá-se a quem tem e Adeus) era o grande nome de Vila Isabel, a dupla Cartola e Carlos Cachaça começava a elevar o nome da Mangueira, Paulo da Portela comandava a folia em Madureira e Mano Décio da Viola pilotava a inspiração na Serrinha, de onde despontou a Império Serrano.

É de 1925 a primeira música composta por Ismael Silva, Faz carinho, gravada por Orlando Tomás Coelho, um pianista que era conhecido como Cebola. A melodia era simples e a letra despretensiosa, mas serviu para aproximar Ismael daquele que veio a ser mais tarde um grande “parceiro” (as aspas são por conta da má-fama de comprousitor), Francisco Alves. Chico Viola não só regravou a música como garantiu a Ismael que gravaria toda a sua produção dali para a frente, desde que, claro, entrasse como parceiro. Como gravar não era fácil e Francisco Alves era um tremendo vendedor de discos, Ismael Silva aceitou na hora a proposta, exigindo apenas que entrasse nos créditos também o nome de seu parceiro de verdade, Nilton Bastos (letrista genial de carreira curta, morreu em 1931, com 32 anos de idade).

A morte de Nilton Bastos deixou Ismael muito triste. No mesmo ano, apenas alguns meses depois, morreu outro compositor do bairro e também muito amigo do artista, Edgar Marcelino. Ismael deixou o Estácio e foi morar no Centro da cidade (há controvérsias de registros entre as ruas do Resende e Gomes Freire). Começou a frequentar o Café Nice (afinal de contas, todo mundo frenquentava) e conheceu Noel Rosa. Rompeu com Francisco Alves, achando finalmente que estava sendo prejudicado no acordo de parcerias, e começou a gravar com outros cantores, entre eles Silvio Caldas, Carmem e Aurora Miranda, além de Mário Reis (para quem Ismael teria vendido o samba Novo amor).

Com o afastamento de Francisco Alves e a morte de Noel Rosa, em 1937, Ismael Silva viveu um período de isolamento que durou pelo menos até 1950, quando lançou o 78 rotações com duas faixas que fizeram muito sucesso: Antonico e Meu único desejo. Em 1954 participou do espetáculo musical que reacendeu o samba no Rio de Janeiro, chamado O samba nasce do coração, ao lado de Ataulfo Alves, Pixinguinha e vários artistas populares de sua geração. No embalo dos shows e do reaparecimento, gravou logo dois LPs: O samba na voz do sambista e Ismael canta Ismael. Em 1960 recebeu o título de Cidadão Carioca, na Câmara de Vereadores, e participou do espetáculo O samba pede passagem, com Aracy de Almeida e o grupo MPB-4.

Às voltas com alguns problemas de saúde, sobretudo com as varizes nas pernas que o obrigavam a andar de muletas, Ismael levava a vida modestamente, fazendo um showzinho ou outro e gravando um disco de vez em quando. Também tinha músicas suas gravadas por outros intérpretes, como Gal Costa, Clara Nunes, Alcione e MPB-4. Ao completar 70 anos, em 1975, participou de um belo show comemorativo, no Teatro João Caetano, que teve casa cheia e deixou o compositor muito emocionado, ao ver o teatro lotado cantando seus grandes sucessos. Em 1977 marcou presença em um programa de televisão, na TV Globo, dirigido pelo especialista Fernando Faro e dedicado aos sambistas do Estácio, com destaque para a sua obra. Ismael Silva morreu no ano seguinte, 14 de março de 1978.

Os maiores sucessos de Ismael Silva:

Se você jurar (Ismael Silva/Nilton Bastos/Francisco Alves) – Um dos maiores sucessos da carreira de Ismael e do carnaval de 1931, na gravação original de Francisco Alves, Mário Reis e Orquestra Copacabana: “Se você jurar/Que me tem amor/Eu posso me regenerar/Mas se é para fingir, mulher/A orgia assim não vou deixar (...)”

Antonico – Cartão de visita de Ismael Silva nas rodas de samba, foi feito sem parceiro e gravado pela autor em 1950. O sucesso maior foi conhecido em 1972, quando Gal Costa incluiu a canção no show Gal a todo vapor e no disco do mesmo nome.

Adeus (Ismael Silva/Noel Rosa/Francisco Alves) – Composta em 1932, é uma homenagem póstuma ao parceiro Nilton Bastos, que morrera no ano anterior. Gravada originalmente pela dupla Castro Gonzaga e Jonjoca, foi regravada em 1975 por outra dupla, Vinicius de Moraes e Touquinho: “Adeus, adeus, adeus/Palavra que faz chorar/Adeus, adeus, adeus/Não há quem possa suportar/O adeus é tão triste/E não se resiste/Ninguém jamais/Com o adeus pode viver em paz (...)”

O que será de mim (Ismael Silva/Nilton Bastos/Francisco Alves) – Hino da malandragem e tema frequente em sua obra, que comprovou o grande compositor que era o trabalhador Ismael. Foi gravado em 1931, por Francisco Alves e Mário Reis: “Se eu precisar algum dia/De ir pro batente/Não sei o que será/Pois vivo na malandragem/E vida melhor não há (...)”

Tristezas não pagam dívidas – Mais uma sem parceiro, que mostra a versatilidade de Ismael. Com melodia agradável e versos bem-humorados, o samba foi lançado em 1932, mais uma vez por Francisco Alves. Mereceu regravação histórica e curiosa em 1971, com as feras Eliseth Cardoso, Silvio Caldas e o regional de Canhoto: “Tristezas não pagam dívidas/Não adianta chorar/Deve-se dar o desprezo/A toda mulher que não sabe amar (...)”

Sofrer é da vida (Ismael Silva/Nilton Bastos/Francisco Alves) – Na linha dos versos simples mas bem-humorados, este samba fez um enorme sucesso no carnaval de 1932, quando lançado por Mário Reis. Repetiu a dose em 1967, ao fazer parte de um LP lançado para reviver os grandes momentos na voz de Mário, chamado Os grande sucessos de Mário Reis: “Sofrer é da vida/Eu já me convenci/Adeus, minha querida/Não foi pra você que eu nasci (...)”

Nem é bom falar (Ismael Silva/Nilton Bastos/Francisco Alves) – Disputa com o Antonico o título de samba mais popular de Ismael. Outro sucesso do carnaval de 31, também na voz de Chico Viola, marcou uma curiosidade: o acompanhamento de um grupo de vida curta intitulado Bambas do Estácio, com Ismael e Nilton entre eles. Repetiu o sucesso 40 anos depois, quando regravado por Mário Reis: “Nem tudo o que se diz, se faz/Eu digo e serei capaz/De não resistir/Nem é bom falar/Se a orgia se acabar (...)”