Memória

Guerra-Peixe, o erudito popular

Por Fernando Toledo - 18/03/2004

Houve um período áureo na Música Brasileira em que a dicotomia entre o que era erudito e o que era popular se enfraqueceu: uma longa fase caracterizada por obras e/ou intervenções de um universo no outro, o que contribuiu sobremaneira para conferir a nossa música a riqueza que até hoje (mesmo levando-se em conta as tentativas da mídia para fazer-nos crer no contrário) exibe. Grandes maestros e compositores eruditos, tidos inclusive como difíceis, de penosa assimilação mesmo por camadas tidas como mais cultas, desenvolveriam trabalhos que podiam ser perfeitamente ouvidos por membros da maior parte do povo (digo a maior parte porque sempre existiram os espíritos de porco e imbecis de plantão). O choro é um exemplo de estilo limítrofe, devido a sua natureza instrumental intrínseca: os primeiros chorões possuíam formação (mesmo que en passant) erudita, como Joaquim Callado, Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth. Outros compositores, nitidamente eruditos, permitiram que a arte de caráter popular se imiscuísse em suas obras e mesmo no processo de criação destas. Como exemplos, podem ser citados Francisco Mignone, Villa-Lobos e Guerra-Peixe. Estes senhores, elementos da classe que dominava o meio musical erudito, foram vítimas honrosas da grandiosidade de nossa Música Popular: mesmo operando em outras esferas, não resistiram ao apelo e à riqueza do som que brotava das ruas e relaxaram, permitindo que sua obra avançasse, apontasse novas soluções, descobrisse aspectos até então inusitados da musicalidade, e, na contramão, acabaram por engrandecer aquela que os influenciou.

César Guerra-Peixe, que completaria 90 anos em 2004, foi o exemplo mais característico dessa atitude: tendo ouvido muita música popular em sua infância, em breve dominava diversos instrumentos e se entregava a sua aventura musical. Estudou na Escola de Música Santa Cecília, em sua terra natal, Petrópolis, se transferindo a posteriori para a Escola Nacional de Música, na capital. Como sói acontecer, para ganhar o pão de cada dia teve de tocar em pequenas orquestras, em locais como, por exemplo, a Taberna da Glória. Em 1944, já formado, Guerra-Peixe conheceu aquele que o encaminharia para uma experiência radical, principalmente falando em Brasil: o alemão Hans-Joachin Koellreuter, que o introduz ao dodecafonismo de Schonberg.
O dodecafonismo é uma tentativa de recriar a forma de se encarar a música: ainda se valendo da escala temperada (que alguns compositores tentariam mesmo abolir depois), o dodecafonismo eliminava a idéia da cadência como a concebemos, ou seja, a seqüência que o tonalismo impunha, em que a composição partia de uma tônica a fim de evoluir por meio de hierarquias estabelecidas e chegar a um determinado efeito num universo que funcionava em função da localização das notas ouvidas, em série ou simultaneamente, dentro destas mesmas hierarquias. Numa composição dodecafônica, é inconcebível a clássica forma popular que pode ser resumida em partir de uma tônica, fazer uma preparação para uma resolução, e a ocorrência da resolução, geralmente um retorno à tônica inicial. No dodecafonismo, todas as doze notas são utilizadas na série que constituirá a composição, estabelecendo centros tonais ao bel-prazer do compositor, em função exclusivamente da busca do efeito a obter-se. Com esse método, os resultados geralmente são obras difíceis, já que as seqüências melódicas não encontram referências internas na mente dos ouvintes, como se a música não se resolvesse – o que, ao pé da letra, é o que ocorre. Nada mais distante de uma canção popular.

Guerra-Peixe transitou neste meio por algum tempo, tendo sido mesmo um dos mais prolíficos e destacados membros do grupo Música Viva, que reunia revolucionários como Edino Krieger, Cláudio Santoro e Eunice Catunda. Declarações suas dessa época exprimem bem o espírito do grupo: chega a declarar que a repetição de um acorde ou ritmo “não passaria de mero primarismo”. Obras suas do período, como Noneto, ficaram célebres: a sua primeira audição, sob a batuta do maestro alemão Hermann Scherden, foi por meio da Rádio de Zurich, em 1948.

Contudo, o espetacular caráter revolucionário do dodecafonismo já trazia, em si, o gérmen de seu ocaso: a ausência ou contínua mudança de centros tonais geravam obras geniais, mas que eram escolas em si mesmas, universos fechados, intransmissíveis à continuidade da evolução musical. E Guerra-Peixe percebeu isto, notadamente quando tentou adaptar o dodecafonismo à cor local. Descobriu que, em função da natureza da música brasileira, isto era uma tarefa impossível. E percebeu que, à medida que “abrasileirava” o dodecafonismo, “mais me afastava dele, a ponto de negá-lo”. O que acabou por fazer, inaugurando outra faceta de sua obra.

Influenciado por pesquisas musicais que fizera, acerca da produção musical folclórica do Brasil, escreveu o livro Maracatus do Recife, e compôs toadas (Nego bola-sete), sambas (Cortesia, É você que tem), sambas-canção (É melhor não voltar, O amor nasce do olhar), trilhas para filmes (O canto do mar, de Alberto Cavalcanti) e até mesmo pontos de macumba (como Mamãe-Iemanjá). Seu talento como instrumentista também passou à história: foi violonista da célebre Orquestra da Rádio MEC, e se apresentou por todo o Brasil. Como arranjador, seu trabalho é um clássico, sendo responsável, por exemplo, por um dos pontos mais altos de nossa música, o genial disco Afro-sambas, de Baden e Vinícius. Para completar, foi professor em diversas escolas, tendo ministrado aulas a gente do calibre de Baden Powell, Roberto Menescal, Clóvis Pereira, Sivuca etc. Em 1993, ano de sua morte, recebeu, merecidamente, o título de Maior Compositor Brasileiro Vivo, uma justa homenagem a quem viveu exclusivamente em função da criação, disseminação e evolução desta.

Guerra-Peixe experimentou, rompeu regras, rompeu fronteiras. E alguém como ele, que viveu nos dois mundos (o erudito e o popular), e em ambos foi grande, sempre será uma perda irreparável. Felizmente temos nossos Guingas espalhados por aí, brincando de torcer e distorcer sons, a fim de tentar preencher esta lacuna. Longa vida à Música Brasileira!