Memória

Fernando Lona, um talento que ficou pelo caminho

Por Gerdal José de Paula - 06/05/2014

Com a brevidade da cantiga infantil da qual recolheu o mote para entoar os seus versos em "Três, Três" - ainda muito bem gravada pelo Quinteto Violado no elepê de 1973 do conjunto, "Berra Boi" -, assim passou Fernando Lona, baiano de Ubaitaba, no sul do estado, por este mundo dos vivos e dos "muito vivos" e pelo universo, nem sempre receptivo ao mérito, da canção popular. Tinha um show marcado para o dia 10 de novembro de 1977, "De Cordel a Bordel", no Teatro Paiol, em Curitiba, acompanhado do conterrâneo e parceiro Vidal França (filho do Venancio do clássico "O Último Pau de Arara") e do Bando de Macambira, mas, às 15h do sábado 5 de novembro daquele ano, a 3 km de Registro, no interior paulista, como detalha o pedagogo e pesquisador soteropolitano, residente em Itabuna, Luiz Américo Lisboa Jr., teve a marcha do seu automóvel - e a da carreira na MPB - freada bruscamente pelo destino em violento acidente na BR-116. Ia ao encontro dos aplausos paranaenses, nos seus 40 anos de idade, marcados por presença multifária na arte, cantando, compondo, tocando violão, representando e escrevendo livro ("O Romance Desastroso de Josiano e Mariana").
 

À sua criação musical, em peças e filmes, assim como no único elepê que gravou ("Cidadão do Mundo", pela Tapecar, poucos meses antes de a visita da "velha senhora" impor a ele, aqui na Terra, o seu derradeiro "ficará"), Fernando Lona imprimiu um lirismo engajado. Isso se revela em "Fado das Gaiolas" ("O rei só quer meu ouro/e depois a minha morte/não entende a minha dança/nem o fado das gaiolas,,,"), ao passo que, em "Lamento de Justino", canção feita com Orlando Sena, traduz os percalços do sertanejo em seu meio de origem, até mesmo na migração por melhor sorte ("partiu Justino/ levou família/e retirou sem destino.../carne ficou no espinho/esperança ficou no caminho..." Nesse veio de observação, afirma Luiz Américo: "Fernando Lona é um artista que aliava, como poucos, a beleza dos versos e da harmonia às imagens fortes da sua época. Uma personalidade dotada de um sentimento nativista tão forte como um jequitibá, cristalino como as águas de um rio e penetrante como o pôr do sol." Embora espécime humano das "faunas urbanas" de Salvador, do Rio e de São Paulo, nele predominava, na motivação autoral, o apelo rural nordestino, de chão banhado de demandas e seco de oportunidades.
 

Em meados de 1964, na inauguração do Teatro Vila Velha, em Salvador, Fernando participou de um show histórico e de sucesso, "Nós, Por Exemplo", como integrante de um grupo artisticamente substantivo e até mesmo renovador, no qual também se revelavam, nessa ocasião, apenas para o público de lá, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa (ainda Maria da Graça), Maria Bethânia, Alcyvando Luz, Tom Zé (ainda Antônio José, substituto de Fernando em uma segunda apresentação), Perna Froes e Djalma Correa. Antes conhecido do cartaz cultural de Salvador por sua atuação no teatro como ator, na peça "A Exceção e a Regra", de Bertolt Brecht, Fernando, ainda no politicamente traumático 1964, iniciaria importante colaboração autoral no nosso cinema, levando a sua doce lira "gauche" às imagens de "Grito da Terra" (um libelo pela reforma agrária rodado na Bahia por Olney São Paulo, preso e torturado, cinco anos depois, como reflexo do AI-5, por causa do "subversivo" curta "Manhã Cinzenta" e também prematuramente falecido, em 1978, aos 41 anos) e, entre outros filmes, mais adiante, no Rio, em 1968, fazendo a trilha do proibidíssimo "Jardim de Guerra", de Neville D`Almeida (com roteiro deste e de Jorge Mautner), outro osso duro de roer, então, para os militares aboletados no Planalto Central do país.
 

Tempos árduos, de comunicação cifrada na imprensa e nas artes, tornando a música popular, pela obviedade da repressão, um "paraíso" da metáfora, muito explorada pelo tutano dos compositores na chamada era dos festivais. E nela, em parceria com um paraibano formado em Direito, Geraldo Vandré, e bem ajudado pela interpretação da saudosa Tuca e do percussionista Airto Moreira, Fernando inscreveria a sua assinatura, ganhando, em 1966, o II Festival de Música Popular da TV Excelsior com uma bela marcha-rancho, "Porta-Estandarte": " Eu vou levando a minha vida enfim/cantando e canto sim/ e não cantava se não fosse assim/levando pra quem me ouvir/certezas e esperanças pra trocar/por dores e tristezas que bem sei/um dia ainda vão findar/um dia que vem vindo/e que eu vivo pra cantar/na avenida girando, estandarte na mão pra anunciar."