Memória

Ernesto Nazareth: A Natureza dos Clássicos

Por Fernando Toledo - 13/02/2004

O que é um clássico? O que faz com que uma determinada obra de Arte passe a constituir-se um referencial em si mesma, de maneira que, ao citá-la ou relembrá-la, se estabeleça como elemento fixador de um momento ou de uma determinada emoção estética, sem necessidade de comparações ou contraposições?

A resposta é clara: um clássico é aquilo que fala a todos os homens, de todas as épocas, de forma única e definitiva. Algo que é carregado de todos os substratos humanos, que toca aquilo que é mais humano no homem, por mais rebarbativa que esta expressão possa parecer. E como tocar a todos os homens, de todas as eras? Sendo uma entidade única e ao mesmo tempo múltipla; algo de conteúdo tão rico que permita, a cada nova leitura, uma visão nova; que carregue tal gama de significações que, sem abandonar a intenção original, de conter os elementos propostos quando de sua elaboração, revele, a cada novo olhar, um engaste ou detalhe que antes passara despercebido: pois somente assim será perene, somente se revelar a cada dia um novo Universo – atribuição, diga-se de passagem, extremamente difícil de se cumprir.

Três gêneros promoveram a gestação da música genuinamente brasileira: a modinha (o mais antigo deles), o choro e o samba. Com o passar dos anos, vieram a se intercambiar, com um adquirindo elementos do outro (e de outros gêneros, evidentemente), num processo de miscigenação tão ao nosso gosto que deu origem à moderna Música Brasileira, reconhecidamente a área cultural em que o nosso País mais se destaca. No cerne da consolidação do choro, o mais complexo dos três em termos instrumentais, encontram-se nomes como Joaquim Callado, Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth, pianista excepcional que pode e deve ser considerado como criador de alguns de seus maiores clássicos (na acepção do parágrafo anterior).

Curiosamente, Nazareth não permitia que suas peças que, se ainda não eram consideradas choros (afinal, o termo ainda era incipiente), já eram, claramente, maxixes, lundus e assemelhados, fossem registradas sob estes rótulos, exigindo o termo tangos brasileiros, que comportaria uma fusão do original argentino com outros gêneros, como a polca, por exemplo. Tal intolerância, que hoje soa esdrúxula, é perfeitamente explicável devido às exigências da época, pois, como aponta a pesquisadora Elizabeth Travassos (em seu livro Modernismo e Música Brasileira), no clima à época da instauração da República, os ideais positivistas buscavam excluir toda e qualquer herança que pudesse ser considerada popular ou “primitiva” na Cultura. Emblemático desse tipo de pensamento é o caso dos maestros que, ao registrarem peças de música popular, o faziam sob pseudônimos. Francisco Mignone, por exemplo, utilizava para tal o folclórico epíteto de Chico Bororó.

Mas as composições de Nazareth traziam todos os elementos do choro, ou do que viria a constituir-se como tal. Chegou mesmo a estabelecer modelos para o gênero, compondo obras que, até hoje, são executadas nas rodas, como Tenebroso, Apanhei-te Cavaquinho, Brejeiro, Ameno Resedá e a mais famosa de todas, Odeon, presença obrigatória em qualquer coletânea. Sua vida, contudo, foi, como sói acontecer aos gênios, extremamente conturbada: nascido em 1863, filho de um humilde funcionário público, enfrentou sérias dificuldades para impor-se como instrumentista e compositor, tendo mesmo tocado nas sessões de cinemas cariocas – na era do cinema mudo, músicos realizavam sessões antes das exibições e acompanhavam a “trilha” do filme ao vivo (daí vem o título Odeon, famosa sala de projeção do Rio de Janeiro).

Acabou por tornar-se pianista da Casa Carlos Gomes, onde executava, ao piano, as partituras que seriam adquiridas pelos fregueses. Conseguindo se estabelecer, viveu alguns anos de glória, antes que uma sombra, que o acompanharia até o fim de seus dias, se manifestasse de forma indelével: a sífilis, terrível num mundo sem penicilina (que só seria descoberta por Alexander Fleming em 1928 e que demoraria ainda outros anos para chegar ao Brasil). A doença primeiro minou sua audição, flagelo cruel para um musicista. Depois, terminou por arrebatar-lhe a lucidez, levando-o a ser internado num manicômio do Rio, em 1933.

No dia 01 de Fevereiro de 1934, fugiu, durante um passeio, do último de seus domicílios, a Colônia Juliano Moreira, na Praia Vermelha. No dia 04, seu corpo foi encontrado boiando numa represa próxima. Triste fim para um criador de tamanha sensibilidade.

Contudo, desde então, a obra de Nazareth demonstra, a cada dia, que comporta matizes inesperados, que sua fusão entre popular e erudito (raiz do choro por excelência) transcende épocas e ambientes culturais específicos: Vinícius de Moraes, letrista da bossa nova em sua gênese, pôs letra em Odeon, já em 1968. Apanhei-te cavaquinho já havia ganhado letra (de Darci de Oliveira) em 1943. Artistas como Maria Teresa Madeira, Antônio Adolfo, Arthur Moreira Lima e Jacob do Bandolim gravaram e regravaram seus temas.

Isto prova que as obras de Arte, quando atingem o sublime, resistem ao tempo e a qualquer dissabor, impondo-se perenemente, mesmo à revelia da mais intransigente das ópticas. Desmentindo desta forma a máxima, propagada por certos setores da mídia brasileira, de que não temos passado e que nosso futuro nada mais é que uma vaga marola no oceano da entropia.