Memória

Caymmi é 100

Por Luís Pimentel - 25/04/2014

Dizem as más línguas que o baiano opera em três velocidades: lento, lentíssimo e Dorival Caymmi. Sacanagem das más línguas, claro. Pois foi lentamente que o Buda nagô dos cabelos e bigodes de algodão que nesse dia 30 de abril faria 100 anos construiu uma das mais magistrais obras da MPB.
 

“Caymmi é um criador abençoado/Navegador das águas da canção/é o compositor do mar predestinado/Seu violão tem cordas de sargaço/E foi cortado de um pedaço de uma velha embarcação”. Quem escreveu isso aí foi Paulo César Pinheiro (chama-se Obá de Xangô), cantando o Caymmi que todos cantaram e cantam. Querem ver quem mais se derreteu com o poeta dos mares? Além de Chico e de Paulinho Pinheiro dá para lembrar João Bosco e Aldir Blanc (“Dorival Caymmi falou pra Oxum/Com Silas estou em boa companhia”, Nações), Gilberto Gil (Dorival é ímpar/ Dorival é par/Dorival é terra/Dorival é mar”, Buda Nagô), João Nogueira e Edil Pacheco (Caminha, Caymmi) e ainda há muito o que ser cantado.
 

Referência e ponto de equilíbrio na MPB, Dorival Caymmi foi e é reconhecido aqui e no exterior como um dos maiores compositores brasileiros de todos os tempos. Produziu sem trégua (mas sem exagero!) durante uns 70 anos, obra que se firmou pela qualidade – quantidade nunca foi o seu objetivo. Desde que desembarcou no Rio de Janeiro de um navio da Companhia de Navegação Costeira, em abril de 1938, o jovem que deixou a boa-terra aos 24 anos de idade, mas que jamais deixou de cantá-la, compôs verdadeiros hinos do nosso cancioneiro. Afinal, rodas de samba, dedilhadas de violão nas esquinas ou soluços de botequim que não incluem Saudades da Bahia, Maracangalha, Dora ou a morena Marina morena que um dia se pintou não merecem consideração. “Inventei a lagoa do Abaeté e a praia de Itapoã. Eram desertos antes das canções”, disse uma vez o baiano.
 

Falso baiano por princípio e inspiração, ele mesmo garantiu: “Sempre vivi no Rio. Via os pescadores baianos como turista, quando ia visitar meus pais nas férias”. Um ano depois de chegar ao Rio, cidade que ele considerava a mais bonita do mundo e de onde não pensa em sair, Dorival emplacou o seu primeiro sucesso, o samba-dengoso O que é que a baiana tem?, na voz da grande dama da canção e musa de todos os compositores da época, Carmem Miranda.
– Carmem já era brejeira, mas eu abri um novo caminho para ela.
 

Millôr Fernandes, que foi amigo de juventude de Dorival Caymmi e que também já nos deixou, disse em depoimento para a Coleção Gente, da Editora Rio, que o compositor tinha certeza de que faria sucesso. Um dia, às voltas com a arte da primeira página de O Cruzeiro, Millôr ouviu de Caymmi a promessa: “Um dia você vai colocar o meu nome aí”. Um ano depois de chegar já mostrava ao público sua voz límpida, suave e poderosa com a gravação do primeiro disco, um compacto que apresentava de um lado Rainha do mar e, do outro, Promessa de pescador. Daí em diante, foi construir sua obra sem pressa e com delicadeza de ourives, ao sabor precioso da criação. Levou nove anos para finalizar João Valentão e compôs Maricotinha em poucos segundos. Nunca foi de dar receita, mas ousou uma, sobre sua saúde sempre invejável: “Vem da alegria”.
 

Caymmi mereceu as flores em vida, todas. Ganhou algumas: em 1986 foi homenageado pela Estação Primeira de Mangueira com o enredo Caymmi mostrou ao mundo o que a Bahia e a Mangueira têm; recebeu, dois anos antes, o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal da Bahia; e foi agraciado até pelo governo francês, com sua cobiçada Medalha Commandeur de Artes e Ofícios.
Caymmi morreu no Rio de Janeiro, no dia 16 de agosto de 2008.