Memória

Candeia: samba e resistência

Por Luís Pimentel - 27/07/2004

“Hoje é manhã de carnaval/Há explendor/As escolas vão desfilar garbosamente/E aquela gente de cor/Com a imponência de um rei/Vai pisar na passarela”. (Dia de graça)

Antonio Candeia Filho é samba e resistência. O grande compositor nasceu em 1935 (17 de agosto) e morreu em 1978 (dia 16 de novembro). Viveu pouco, apenas 43 anos, mas criou intensamente e deixou uma obra e uma história de vida que só enchem de orgulho seus pares e seus seguidores. Mito da resistência cultural brasileira – a criação da escola de samba Quilombo, em meados da década de 70, é o exemplo maior de sua identificação e militância nessa área –, o compositor é até hoje um dos grandes nomes no panteão da Portela.

Candeia começou a fazer músicas ainda na adolescência, por inspiração caseira. Seu pai tocava flauta e carregava o pequeno Antonio para as rodas de samba e de choro que ferviam em Oswaldo Cruz e Madureira. “Meu pai eu só vim a entender quando tinha uns 12 para 14 anos. A princípio eu sentia uma certa frustração. Nos aniversários não tinha nada desses aniversários normais com bola, sorvete, chocolate, um bolozinho que a mãe da criança fazia. No meu aniversário meu pai fazia uma tremenda feijoada e quem vinha eram somente adultos. Não havia participação direta de criança da minha idade. Muita roda de samba, muita cachacinha boa, e eu olhando”, disse em uma de suas últimas entrevistas. Começou a freqüentar a Portela, virou compositor da escola e em 1953, antes de completar 18 anos, viu sua gloriosa agremiação de Madureira desfilar com um samba-enredo de sua autoria, As seis cartas magnas.

O Candeia participativo e contestador desponta na segunda metade dos anos 70 – infelizmente, pouco antes de sua morte – quando, graças à abertura política, os movimentos populares retomaram sua organização, entre esses movimentos a luta dos militantes pelos direitos dos negros. É dessa época a criação do Centro de Estudos Afro-Asiáticos e do Instituto Popular de Cultura Negra, órgãos importantes para a retomada dos movimentos negros no Rio de Janeiro. Muito ligado aos dirigentes e militantes do Centro e do Instituto, Candeia funda o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, com duas premissas básicas: a “valorização das culturas negras em tudo o que se refere às suas aspirações” e também a “valorização da manifestação da arte popular, há muito banida das escolas de samba”.

Candeia ficou um pouco esquecido, para voltar a brilhar em 1995, quando o parceiro Martinho da Vila gravou o disco Tá delícia, tá gostoso, no qual incluiu um pot-pourri chamado “Em memória de Candeia”, que tinha as faixas Dia de graça, Filosofia do samba, De qualquer maneira, Peixeiro grã-fino e Não tem vencedor. No ano seguinte foi a vez de Zeca Pagodinho incluir no belo CD Deixa clarear a regravação, juntamente com a Velha Guarda da Portela, de um samba que tinha a cara e a marca de Candeia (apesar de não ser de sua autoria, e sim de Alcides Malandro Histórico), por ter sido por ele gravado com enorme maestria, Vivo isolado do mundo. Esse samba foi registrado por Candeia no melhor disco de sua carreira, Axé, de 1978.

Enquanto houver samba haverá Candeia. A máxima está traduzida na canção-homenagem composta por Luiz Carlos da Vila, lembrando e perpetuando a memória do mestre e amigo: “A chama não se apagou/Nem se apagará/És luz de eterno fulgor, Candeia/O tempo que o samba viver/O sonho não vai acabar/E ninguém irá esquecer Candeia”. Em 1997 foram relançados em CD três discos de Candeia: Samba da antiga, de 1970, Filosofia do samba, lançado originalmente em 1971 e Samba de roda, de 1974.

Candeia foi um homem valente, que enfrentou algumas adversidades na vida com determinação e força. Viveu os seus últimos anos (mais de 10) preso a uma cadeira de rodas, em decorrência de um tiro na coluna vertebral – depois de uma discussão no trânsito, no final da década de sessenta. Policial Civil, Candeia se aposentou por invalidez após o acidente e pôde, então, se dedicar mais à música, aos movimentos musicais e às causas sociais de seu povo.