Memória

Ary Barroso: a história da MPB passa por ele

Por Luís Pimentel - 15/02/2020

  O ano de 1964 foi mesmo fatídico para o Brasil e os brasileiros. Além dos fatos políticos conturbadores que influenciaram todo o país, morreu no Rio de Janeiro (no dia 9 de fevereiro) o compositor, letrista, autor de espetáculos para o teatro-de-revista, animador de auditórios, locutor esportivo (profissão na qual marcou época e ficou conhecido como “o homem da gaitinha”), ex-vereador, flamenguista doente, boêmio sadio, personalidade internacional e fundador da União Brasileira e Compositores Ary Evangelista Barroso.
      Além do enorme talento, Ary ficou conhecido também pela fama de rabugento. Contam que semanas antes de morrer ele teve um encontro com o jornalista e compositor Antônio Maria (outro gigante da MPB), com quem andava às turras por conta de uma disputa de genuína vaidade. Ary vivia repetindo que a música brasileira mais conhecida dentro e fora do país era Aquarela do Brasil (“Brasil, meu Brasil brasileiro/Meu mulato inzoneiro/Vou cantar-te nos meus versos”), de sua autoria. Antônio Maria rebatia, alegando que a canção mais badalada aqui e no exterior era a sua belíssima Ninguém me ama (“Ninguém me ama/Ninguém me quer/Ninguém me chama de meu amor”).
Depois de alguns bate-bocas, Maria foi visitá-lo em casa, onde ouviu um insólito pedido:
– Maria, canta para mim Aquarela do Brasil.
Comovido, Antônio Maria não se fez de rogado. Puxou uma caixa de fósforos e cantarolou a música inteirinha, sem errar uma palavra. Fingindo-se muito agradecido e pretendendo retribuir a gentileza, Ary Barroso alfinetou:
– Agora pede para eu cantar para você Ninguém me ama.
– Bom, Ary, se você faz questão...
A resposta:
– Não sei a letra.
A lenda deve corresponder à verdade, pois o compositor tinha mesmo a fama de ser um sujeito de temperamento difícil, que se envolveu em inúmeras picuinhas nos palcos, nas gravadoras, nos estádios de futebol, na Câmara de Vereadores e até nos Estados Unidos – onde recusou um convite para ser o todo-poderoso diretor musical da Walt Disney Production com uma frase que até hoje os americanos se esforçam para entender:
– Não fico nem mais um dia. Aqui não tem Flamengo.
Ary Barroso, que se tivesse conseguido driblar o cigarro e o conhaque já teria rompido a barreira dos três dígitos desde o ano de 2003, ficou órfão de pai e mãe aos seis anos, na cidade de Ubá, em Minas Gerais, onde nasceu em 1903, no dia 7 de novembro. O deputado estadual e promotor público João Evangelista Barroso morreu poucos dias depois da mulher, Angelina Resende Barroso (ambos de tuberculose), deixando o pequeno Ary sob os cuidados das tias e da avó. Com 40 contos de réis no bolso – sua parte na herança de um tio abonado – desembarcou no Rio em 1921, reservando imediatamente acomodações em uma pensão da Rua André Cavalcanti, perto da Lapa, e inscrevendo-se no vestibular para a Faculdade de Direito. Aprovado, demorou oito anos para concluir o curso, trancado diversas vezes por incompatibilidade de horários.
No carnaval de 1964 a Escola de Samba Império Serrano escolheu como enredo o tema Aquarela Brasileira, cujo samba-enredo começa assim: “Vejam essa maravilha de cenário/É um episódio relicário/Que o artista num sonho genial/Escolheu para este carnaval/E o asfalto, como passarela/Será a tela do Brasil em forma de aquarela”. Pouco antes de a escola pisar na avenida, chegou a notícia: Ary Barroso morreu. Quem assistiu garante que a Império conseguiu, apesar de tudo, fazer um belo carnaval.