Memória

Aniceto do Império

Por Rodrigo Ferrari - 28/03/2005

Os cadernos de Mestre Aniceto

Era uma quinta-feira comum em nossa cidade, não fosse um encontro que aconteceria mais tarde e prometia ser memorável. O cenário: um botequim típico do subúrbio, uma casa arejada e simpática em Vista Alegre, numa rua arborizada vizinha ao cemitério de Irajá. O anfitrião: Wilson Moreira, genial sambista, autor de pérolas como Senhora Liberdade e tantas outras. O convidado: ninguém menos que Aniceto de Menezes e Silva Junior, o Mestre Aniceto do Império. Se não me engano corria o ano de 1990 ou 91.

Chegamos cedo, no fim da tarde, e lá já estava Mestre Aniceto, acompanhado de sua filha, que sempre anotava suas criações instantâneas num caderno espiralado e que naquele instante servia-lhe uma sopa – Aniceto há muito já não enxergava direito, acho até que naquele momento seus olhos eram essa sua filha. Mas não pensem os senhores que com isso sua altivez tivesse desaparecido. Em torno dele as pessoas falavam baixo, quase que cochichando, talvez tensas com a perspectiva de presenciar um momento inigualável. Não era um show, não havia palco, era uma roda num bar, como tantas outras, mas a presença dele fazia com que todos soubessem que algo grande estava para acontecer.

Terminada a sopa, quis Aniceto saber do Wilson. O anfitrião ainda não chegara, mas já estava a caminho. O Mestre, sentado ao lado da filha, ia reagindo com uma certa indiferença a todos que vinham prestar-lhe reverência. De quando em quando, e cada vez mais acabrunhado, perguntava pelo amigo. A noite foi caindo, as pessoas chegando, e nada do Wilson. Os músicos estavam tensos, os instrumentos em seus estojos, um silêncio de maracanazo no ar.

Cheguei a temer o pior, Seu Aniceto indo embora irremediavelmente desgostoso do amigo (já conhecia algumas histórias de decepções do Mestre, que jamais perdoava quem o deixava esperando). Parecia que o tempo parara, que o Wilson não chegaria nunca, que tudo ia acabar de forma desastrosa. Eu olhava para o fim da rua e pedia pela chegada do Alicate, que ainda não conhecia, mas que, por intermédio do amigo Pedro Amorim, viria a conhecer alguns anos depois. Falando no Pedro, permitam um parêntesis:

Quem não conhece bem Mestre Aniceto talvez não saiba que ele foi mestre na arte do Partido-Alto, improvisador implacável, temido em todas as rodas porque vinha de um tempo em que era no verso que as grandes questões se resolviam. No samba duro, uma rima atravessada de Aniceto feria mais que uma bordoada bem dada. Pois bem, dizem que certo dia, no Candongueiro, Aniceto versava para alegria dos felizardos que estavam por lá. Um deles era o Amorim, músico de primeira e também craque no improviso.

Lá pelas tantas, com a elegância de sempre e pisando devagar, como é do seu feitio, Pedro foi chegando e trocou improvisos com o Mestre, que deu corda e foi gostando. No final, sem que muita gente visse, Aniceto comentou: “este rapaz faz o verso deitado na gramática”.

Mas voltando ao bar, naquela quinta-feira, o clima ainda estava tenso quando de repente Aniceto bateu na mesa três vezes. O silêncio inundou o estabelecimento, pareceu que o bairro todo parou respeitando o chamado, sua filha puxou do caderninho e sua voz impressionante ecoou forte:

“Nunca mais eu vou
num samba no Irajá
os convidados chegaram
e os donos da casa não querem chegar”

Os músicos correram, Aniceto repetiu o refrão umas seis ou sete vezes, até todos na roda já o estarem acompanhando, e continuou mandando forte nas estrofes: “senhor Wilson Moreira, escute o que vou lhe dizer...”, e o que ele cantava não saberia reproduzir, embora certamente esteja lá no caderno.

Isso foi lá pelas oito da noite, um pouco depois chegou o Alicate, com sua simpatia impressionante, sendo um dos poucos a versar com ele, e Mestre Aniceto só parou muito depois das onze, com toda a assistência extasiada, impressionada com o vigor demonstrado. Aniceto não poupava ninguém, e enquanto seus ‘oponentes’ o reverenciavam, ele só acertava na canela. Num determinado momento, colocou para fora da roda um cavaquinho que, segundo ele, não estava correspondendo.

Era tarde quando fomos embora, e até hoje me pergunto onde estarão esses cadernos...

Rodrigo Ferrari
Editor, livreiro e pesquisador da MPB