Homenagens

Valeu, Trambique!

Por Cláudio Jorge - 24/02/2016

José Belmiro Lima, Mestre Trambique, faz parte de uma geração do bairro de Vila Isabel que viu muita coisa boa acontecer, outras nem tanto. Morador das antigas do Morro dos Macacos tornou-se músico profissional como tantos que vieram daquelas bandas, e ao lado de seu parceiro Paulinho da Aba viveu muitas histórias que serviram para boas risadas de quem teve o privilégio de ouvi-las, contadas por ele ou pelo Paulinho.

Eram amigos desde cedo e a grande diversão era um sacanear o outro. Quando as coisas apertavam, e isso aconteceu muitas vezes ao longo de suas vidas, sempre davam um jeito. Trambique montava uma barraca de frutas na diagonal oposta ao Varandāo, bar na Teodoro da Silva esquina com Mendes Tavares, e o Paulinho colocava lá as pipas que fazia para vender. Paulinho coloca uva na cerveja, pra dar pressão, segundo ele e o Trambique ficava reclamando dizendo a uva dele iria acabar.

Falar do Trambique é lembrar que ele foi o fundador da Herdeiros da Vila Isabel, preocupado com, além do futuro da Vila, ocupar as crianças expostas a criminalidade. O apoio vinha de dentro da escola mesmo, sem ONG, sem apoio governamental, sem patrocínio. Açāo comunitária mesmo, de verdade.

Falar do Trambique é lembrar que ele foi um artesão de talento confeccionando reco recos que ele vendia ou distribuía aos amigos.

Lembrar de Trambique é lembrar dos fundamentos da bateria de escola de samba que ele conhecia tāo bem, além de tocar uma caixa e um repique de anel que era uma delícia.

Nos encontramos em muitas gravações e shows ao longo de nossas vidas mas guardo na memória dois momentos especiais com ele.

Um foi quando viajamos no Projeto Pixinguinha em 1978 ao lado de Cartola, Dona Zica, Cláudia Savajet e Carlinhos Vergueiro. Foi uma viagem pelo norte do Brasil. Amazonas, Pará, Macapá. Pra nós, naquela época jovens músicos pouco viajados , era quase que chegar em um outro planeta.

Me lembro como bateu estranho para nós todos vermos pela primeira vez uma praia de rio, o deslumbre com a cerâmica marajorara, o tacacá e etc.

O outro momento com Trambique foi quando uns amigos meus angolanos manifestaram o desejo de conhecer uma favela no Rio de Janeiro.

Nessa época Vila Isabel era o quartel general da minha boemia e a amiga Maria Helena Pimenta, com transito livre por toda a comunidade, providenciou todos os tramites “legais” e lá fomos levar os angolanos no Terreirinho, todos juntos: Agriāo, Paulinho da Aba, Trambique, uma galera. Os angolanos gostaram tanto que pediram uma segunda visita, só que dessa vez o ambiente tava carregado lá no alto do morro e fomos então para o Bar do Trambique, que ficava mais embaixo, mas ainda lá em cima, em frente a casa onde ele morava.

Trambique recebeu os de Angola com aquela identificação de quem se reencontra com uns irmãos ancestrais e a recíproca foi verdadeira. Ficaram mais felizes do que pinto no lixo e o churrasco e a cerveja duraram o dia inteiro.

Minhas lembranças de Trambique sāo lembranças de festa, de música, dos sambas da Unidos de Vila Isabel, de coisas engraçadas, como a que aconteceu quando tocamos com Wilson das Neves num evento no Maracanã. Trambique, Carnegal, Chacal e outros batedores, só feras, eu e Dudu Nobre nas harmonias. Todos embaixo do palco esperando a hora de atacar que nāo chegava nunca. Trambique e Carnegal arrumaram um jeito do tempo passar e.... Nāo vai dar pra contar, caro leitor. Só em off.

Mestre Trambique deixou seu nome na história do samba, na história dos músicos, na historia do bairro de Vila Isabel. Deixou sucessos como , “Na Aba”, “Garoa”, parcerias com Paulinho da Aba e Ney Silva.

Zé Trambique, deixou muitas saudades. Saudade que foi sentida e muito chorada no dia de seu enterro.

Dessa vez, ao contrário do enterro do nosso João Nogueira, o bar da esquina teve cerveja suficiente para honrar o enterro do sambista.

Muitos batuqueiros presentes, gente da velha guarda e mais novos, compositores, cantores, produtores, amigos e parentes assistiram neste dia o que eu chamaria de um “manifesto do samba carioca” para homenagear esse grande personagem.

Com todo mundo vivendo uma emoção a flor da pele, um pandeiro deu a marcação, chegou o cavaco e a flauta nāo negou trunfo. De repente todos os batuqueiros atacaram e começou-se a cantar as músicas do Trambique no saguão do Cemitério do Catumbi.

Paradoxalmente as lágrimas aumentaram em todos e o cortejo foi cantando e batucando seguindo Trambique e as pessoas até a sepultura na parte alta do cemitério. Parecia um desfile. Lindo, triste, emocionante, alegre. Tudo junto.

Encerrada a cerimônia, com direito a todos as menções que lembravam Trambique, voltamos na mesma pegada cantando sambas de Vila Isabel, repetindo os sambas do Trambique.

De repente, em seguida ao refrão “Na minha casa todo mundo é bamba, todo mundo bebe todo mundo samba”, um partideiro começa a improvisar homenageando Trambique, contando sobre sua trajetória. Foram umas quatro estrofes de verso, pergunta e resposta, até que a bateria se encontrou com um outro enterro, poucas pessoas, uma tristeza danada. Marcelinho Moreira pediu pra batucada parar, mas o partideiro seguiu e improvisou um pêsames para a família do outro enterro, dizendo que nāo era desrespeito a ninguém mas estávamos ali no enterro do Mestre Trambique e coisa e tal.

Foi uma loucura. O refrão voltou mais forte e a batucada se desfez no saguão do cemitério de onde tinha partido.

Paulāo 7 cordas foi logo avisando: Nāo sei quem fez o cerimonial, mas no meu enterro vou querer este rapaz, o PP de Niterói.

É isso. Enterro de sambista, sambista de verdade.

Mestre Trambique propiciou muita coisa em vida, pra muita gente e de saideira deu este momento para todos os seus amigos e parentes que estavam lá no Catumbi.

Do alto do Morro dos Macacos, seu quilombo, Mestre Trambique espalhou sua música pela cidade e trabalhou muito para o futuro do samba. Um trabalho que gerou frutos, herdeiros.

O samba nāo vai deixar você morrer nunca José Belmiro Lima. Valeu Trambique!!!