Especial

Uma canção chamada Asa Branca

Por Daniel Brazil - 24/10/2012

A asa-branca é uma espécie de pomba silvestre, comum em todo o Brasil. Ave migratória, voa para o Sudeste para se acasalar e reproduzir. É também conhecida como pombão, pomba legítima ou pomba-trocaz. No Nordeste, não é raro assistir a passagem dos bandos de asa-branca sobre a caatinga ressecada.

Essa imagem é marcante para muitos nordestinos, de várias gerações. Nenhum, porém, soube traduzir o vôo da asa-branca tão bem quanto o cearense Humberto Teixeira e o pernambucano Luiz Gonzaga.

Diz a lenda que a canção foi composta em apenas um dia, um certo 3 de março de 1947. Gonzagão caprichou na introdução instrumental, que se tornou famosa, e fez multidões entoarem com ele os versos famosos:

Quando oiei a terra ardendo
Quar fogueira de São João...

Mestre Lua sabia que baile nordestino é pra dançar, não pra chorar. E lascava um baião arretado, que fazia todo casal se agarrar no salão. O tema do retirante que abandona suas terras em busca de trabalho e promete voltar quando a chuva cair é um retrato da vida sofrida do sertanejo. Mas na hora da festa, era só arrastar a alpercata e levantar a poeira, que o Rei do Baião não brincava em serviço.

A canção explodiu nas rádios do Sul do país, ultrapassou fronteiras e se tornou uma das brasileiras mais conhecidas no mundo. Curiosamente, versões posteriores consagraram um andamento mais lento, que intérpretes como Caetano Veloso cantaram quase como um aboio.

Caetano transformou a melodia de Luiz Gonzaga numa espécie de canção do exílio, um lamento coerente com a situação que vivia na época, em Londres. Esta versão pode ser vista no filme Tropicália, de Marcelo Machado, em cartaz nos cinemas. Aliás, recomendadíssimo pra quem quer entender melhor aquele cataclismo que abalou a música brasileira nos anos 60!

A lista de intérpretes de Asa Branca é enorme: de Elis Regina a Ney Matogrosso (com Chitãozinho e Xororó), de Hermeto Pascoal a Lulu Santos, de Baden Powell a Badi Assad. Sem contar os intérpretes nordestinos de fato (Hermeto é de outro planeta, certo?), que estão sempre homenageando o mestre: Elba Ramalho, Fagner, Tom Zé, Gilberto Gil, Xangai, Zé Ramalho, Quinteto Violado, Dominguinhos e uma infinidade de trios de forró, na base da sanfona, zabumba e triângulo. Quem nunca cantarolou “quando oiei a terra ardendo” que atire na primeira asa-branca que passar....

Raul Seixas gravou em inglês (White Wings) assim como o grego Demis Roussous, sucesso romântico dos anos 70. Uma lenda no mundo fonográfico é a de que os Beatles teriam gravado a canção. Nos psicodélicos anos 60, é provável que neguinho tenha achado que Blackbird era Assum Preto, e acabaram trocando até a cor do pobre pássaro.

Também fruto da parceria entre Teixeira e Gonzaga, Assum Preto é vista por alguns como uma versão em tom menor de Asa Branca. Mais triste, mais chorosa, realmente essa não dá pra tocar em forró animado. A belíssima letra de Humberto Teixeira compara a falta da amada com a triste sina do pássaro, que tem os olhos furados “pra ele assim cantá mió”.

Não é só na construção melódica ou na escolha de um pássaro-símbolo que as canções se aproximam. Também em Asa Branca os olhos tem papel fundamental, fechando a canção com um dos versos mais belos da música brasileira.

Quando o verde dos teus óio
Se espraiá na prantação...

No ano em que Luiz Gonzaga completaria um século, é bom vê-lo lembrado em shows, filmes, programas de TV, gravações e até teses acadêmicas. O sertanejo que não sabia ler tornou-se uma espécie de fonte inesgotável de inspiração para as gerações que o sucederam. Parecia ter a consciência de que sua obra iria ficar para sempre:

Eu te asseguro, não chore não, viu
Eu vortarei, meu coração.