Especial

Trabalhadores da Canção

Por Daniel Brazil - 20/03/2013

Dizem os estudiosos que os cânticos de trabalho estão entre as primeiras formas conhecidas de canção popular. Das velhas monodias primitivas, circulares e repetitivas, até a sofisticação melódica dos aboios dos vaqueiros nordestinos, cantar durante o trabalho sempre foi uma forma de aliviar as dores da faina diária.

A canção popular do século XX nunca esqueceu sua origem, e a temática do trabalho sempre esteve presente em alguns gêneros, do blues americano à nossa música caipira. E com o surgimento do rádio e da indústria fonográfica, surgiu uma nova categoria profissional: os trabalhadores da música.

Há muitas canções falando de trabalho na MPB. Os pioneiros do samba, divididos entre exaltar a malandragem e retratar o universo urbano, acabavam descrevendo a operária da fábrica de tecidos (Noel Rosa), o peão pendurado no bonde (Ataulfo, Wilson Batista), o estivador (Geraldo Pereira), o camelô, o comerciário, o cobrador de impostos, o jornalista...

Não por acaso, os quatro citados no parágrafo anterior são os compositores que mais se referem ao trabalho urbano na Era de Ouro do samba. Na música caipira, as referências ao lavrador, agricultor ou boiadeiro sempre estiveram presentes. Marchinhas de carnaval ironizaram a vida da funcionário pública (Maria Candelária), o acordar cedo (O Passarinho do Relógio), a mulher que lavava roupa pra sustentar o malandro. Compositores da geração seguinte, como Caymmi e Adoniran Barbosa, imortalizaram categorias profissionais até então pouco lembradas, como os pescadores e os operários da construção civil. Luiz Gonzaga homenageou várias categorias profissionais, além do tradicional boiadeiro: carteiro, costureira, alfaiate, etc.

A polícia sempre permeou os dois universos, o do trabalho e o da malandragem, desde o primeiro samba gravado (Pelo Telefone, 1916). Aqui talvez tenha comparecido por engano, pois algumas versões dizem que o primeiro verso é “o chefe da folia”, e não o “o chefe da polícia”. Faz sentido, mas outros historiadores – também sérios – dizem se tratar de uma sátira ao chefe de polícia da época, Aureliano Leal. O episódio está registrado na imprescindível obra A Canção no Tempo, de Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, pra quem quiser tirar a dúvida.

Mas, e os trabalhadores da música? Salve o compositor popular, como bem escreveu Caetano Veloso. Chico Buarque, provavelmente o compositor contemporâneo que mais se referiu ao trabalho em sua obra, cantou com evidente alegria esta canção. Ele mesmo se referiu ao labor artístico-musical várias vezes (Juca, Samba e Amor, Choro Bandido, Bastidores). E ser cantora do rádio já era profissão há muito tempo, como registrou Carmen Miranda, em 1936, junto com a irmã Aurora, no filme Alô, alô, Carnaval.

A rica década de 60, com seus festivais, produziu uma série de canções que exaltavam o trabalho do artista, como Dori Caymmi (Cantador), Edu Lobo (Ponteio) ou Sidney Miller (A Estrada e o Violeiro). Mas talvez tenha sido Milton Nascimento e o pessoal do Clube da Esquina quem mais explicitamente se dedicou a dignificar a profissão (Nos Bailes da Vida, Canções e Momentos, Certas Canções). 

Claro que é praticamente impossível esgotar o universo de canções que falam dos operários da música. São muitas. Ismael Silva, lá atrás, já homenageava o Antonico, que tocava cuíca, surdo e tamborim. Paulinho da Viola afirmou, com todas as letras, que seu sonho era se tornar sambista (14 Anos), e não doutor. 

Mas aposto uma caixa de cerveja que a primeira citação surgiu pelas mãos de Sinhô (1888-1930), ainda no período heroico de afirmação do profissional de música, visto pela polícia (e por grande parte da sociedade) como malandro e vagabundo. É a canção Professor de Violão, resgatada e belamente interpretada por Clodo Ferreira num CD de 2005. Confiram:


Não fosse eu da fuzarca
Professor de violão
De linho de boa marca
Mocinho de coração
Não alcançava o clamor
Da fina elite em furor
Ao versejar a canção
Com grande amor
Até que enfim eu vi
O violão ter valor
Ser dedilhado
Pela elite toda em flor
Já pode um preto cantar
Na casa do senador
Que tem palminha
Desde os filhos ao doutor, ai...
Mas se amanhã Deus quiser
Tirar-me a vida eu irei
Bem satisfeito
Pois já vi o que sonhei
Era a viola querida
Orgulho desse salão
Do meu Brasil
Harmonizando o coração, ai...