Especial

Timbres raros na música popular

Por Daniel Brazil - 13/06/2007

Um dos fatores que faz a nossa música popular ser tão diversificada é a capacidade de abarcar uma enorme quantidade de sonoridades e timbres. Não apenas na matriz folclórica, que incorpora e mistura de forma engenhosa instrumentos indígenas, africanos e europeus, mas também na chamada MPB, que arregimenta com desenvoltura a quase totalidade dos instrumentos de uma orquestra erudita.

Como se essa rica gama de possibilidades sonoras não bastasse, ainda surgem os Smetaks e Uaktis, inventando novas engenhocas e acrescentando suas pinceladas sonoras à nossa aquarela musical. Isso sem falar de Hermeto e outros inventores - ora malucos, ora geniais - que tiram sons de panelas, furadeiras, estalactites, água, porcos, gambiarras e traquitanas.

Mas fiquemos nos instrumentos clássicos. As bandas de coreto e os regionais do começo do século XX se encarregaram de tornar familiares ao ouvido popular os diversos sopros e cordas. Trombones, violinos, contrabaixos, trompetes e oficleides animaram muitos pés-de-valsa nos bailes e saraus daqueles tempos. Habituais na era do rádio, as orquestras sempre aliaram sua massa sonora às vozes cancioneiras.

Mais quando se trata de instrumentos solistas, a variedade escasseia. A flauta está nas origens, e se tornou o mais popular instrumento de sopro, fiel acompanhante dos violões e cavaquinhos. A clarineta vem logo depois, pela mão de mestres como Severino Araújo, K-Ximbinho e Abel Ferreira. A família do sax tem ilustres representantes, a começar de Pixinguinha. Com vários intérpretes de renome, tem sua eternidade garantida.

O trompete teve grandes intérpretes e compositores, mas nunca se tornou um campeão de audiência. Hoje tem poucos solistas, como Joatan Nascimento, que tem um esplêndido trabalho de pesquisa sobre pioneiros do choro no instrumento (Eu Choro Assim, Maianga, 2002), o jazzista Cláudio Roditi e o carioca Silvério Pontes, que em dupla com o trombonista Zé da Velha costuma incendiar a gafieira. Trombone aliás, bem representado por craques como Raul de Barros, Raul de Souza e Radegundis Feitosa, solistas de alto calibre.

Outros sopros têm atuação mais discreta. Clarones, tubas e trompas colorem certas partituras, mas não costumam roubar a cena. O fagote de Aírton Barbosa surpreendeu muita gente na faixa Preciso Me Encontrar (Candeia), no segundo disco de Cartola (Marcus Pereira, 1976).

Mas, e as cordas friccionadas, tão numerosas nas grandes orquestras? Fafá Lemos, nos anos 50, se encarregou de adaptar uma série de peças do choro, do samba e da bossa ao seu versátil violino. Formou com o violonista Garoto e Chiquinho do Acordeon o Trio Surdina, gravou com a pianista Carolina Cardoso de Menezes, mas o instrumento não atraiu as gerações seguintes. A chegada ao Rio do francês Nicolas Krassik, em 2001, repôs o violino na roda de choro, e pelo menos um jovem brasileiro segue os passos de Fafá: o Ricardo Hertz.

Em São Paulo um violista, Fábio Tagliaferri, se encarregou de colocar a prima-irmã do violino no repertório popular, lançando o disco Viola, em 1998, e o mais recente Só Um É Muito Só (Tratore, 2003), com canções próprias e várias vozes convidadas. Fez parte do grupo Música Ligeira, junto o ao violão e a voz de Rodrigo Rodrigues e as cordas de Mário Manga (que também toca cello).

O violoncelo, aliás, é mais conhecido como um bom acompanhante. Desde os cantabile de Villa-Lobos que se presta a duetos com a voz humana ou pequenas intervenções na música popular brasileira. Como solista é mais raro. Embora nomes como Jaques Morelenbaum e Hugo Pilger sejam bem conhecidos, graças aos inúmeros arranjos, participações e parcerias com grandes nomes da MPB, é Lui Coimbra que leva o instrumento para a capa do disco, onde toca (e canta!) as canções de Ouro e Sol (Rob Digital, 2004).

O contrabaixo de arco foi defendido bravamente por veteranos como Luiz Chaves, do Zimbo Trio, e brilha nas mãos de Célio Barros mas, de forma geral, sua utilização contemporânea é mais focada no jazz e na música de concerto.

Há timbres derivados de instrumentos pouco comuns, embora isso seja bem relativo. Nos anos 1960 Poli (Ângelo Apolônio) gravou vários standards com sua guitarra havaiana, chegando a dividir LPs com Waldir Azevedo. Borghetinho desde 1984 encanta ouvintes com sua gaita-ponto, sendo o primeiro instrumentista brasileiro a receber o Disco de Ouro por cem mil cópias vendidas de seu disco de estréia. Mas estes instrumentos têm origem popular, seja na fronteira gaúcha ou no Havaí, e não costumam freqüentar orquestras eruditas.

Os teclados mais, digamos, exóticos, como o órgão, o cravo ou a espineta tem pequena participação na chamada MPB. Com a introdução dos teclados eletrônicos e seus sons sintetizados, acabaram confinados às salas de concerto. Sempre ficará na lembrança o solo de cravo criado por Cristóvão Bastos na linda Para Ver as Meninas, de Paulinho da Viola (no disco de 1971).

Chegamos enfim à percussão, esta enorme família de instrumentos que freqüenta de rodas de samba a óperas. Todo percussionista de formação erudita aprende a tocar pandeiro, mas é difícil ser um solista como Marcos Suzano. Há bateristas fantásticos, como o mestre Luciano Perrone, e até nomes conhecidos, mas a sonoridade extraída das baquetas não pode ser chamada de incomum.

Instrumentos melódicos, como a marimba, o vibrafone e o xilofone, costumam ser ouvidos em concertos tocando peças de Ernesto Nazareth. Aliás, o querido pianista é uma espécie de pedágio entre o popular e o erudito no Brasil. Quem transita de um território pra outro, em qualquer sentido, passa por ele.

O recém lançado CD Canja, do vibrafonista André Juarez (Por do Som, 2007) não é exceção. Está ali o inefável Apanhei-te Cavaquinho, assim como o Trenzinho Caipira, de Villa-Lobos. De ilustre família de músicos, o paulista André tem formação musical de elite, sendo também maestro e arranjador. Atuou como solista à frente de diversas formações. A novidade deste trabalho fica por conta do repertório, que vai de Baden (Berimbau/ Consolação) a Zé Keti (Máscara Negra), passando por Gil (Expresso 2222), Caetano (Luz do Sol), Vandré (Disparada) e Carlos Lyra (Minha Namorada).

O disco encerra com a participação da bateria da Rosas de Ouro na vibrante Pra Que Discutir com Madame (Haroldo Barbosa/ Janet de Almeida). Bateria, aliás, da qual o músico participou por vários carnavais, e onde certamente aprendeu alguns truques que não estão na academia.

São misturas como estas que oxigenam a música de todos os níveis, provocando curtos-circuitos criativos. Alguns timbres sempre soarão exóticos, e ficarão à margem. Outros podem acabar se incorporando e determinando novos caminhos para a criação na música popular. Certamente é essa riqueza de possibilidades sonoras uma das grandes motrizes da nossa cultura.