Especial

Solos de piano gravados por Chiquinha Gonzaga

Por Sandor Buys - 21/07/2015

A importância dos colecionadores particulares para o resgate da memória da música brasileira é muito grande, visto que as iniciativas de instituições públicas em manter coleções nesta área ainda são pífias. Contudo, é preciso considerar que existem vários perfis de colecionadores particulares e nem todos estão dispostos a disponibilizar material de suas coleções. Muitos são aqueles que bradam: – eu tenho e ninguém tem! Então, escondem seus discos e livros a sete chaves, mas têm todo o direito de fazer isto, afinal são coleções particulares, construídas e mantidas com esforço pessoal.

Por outro lado, existem colecionadores que compartilham com prazer o material que abrigam e reconhecem nisto uma contribuição à preservação da memória musical brasileira. Meu amigo Gilberto Inácio Gonçalves, de São Paulo, é um destes colecionadores que se enquadram no rol dos generosos batalhadores da memória musical brasileira.
Um dia conversava com Gilberto pela internet sobre a Fábrica de Discos Popular. Esta pequena fábrica, fundada em 1920 pelo e ex-diretor da Casa Edison João Baptista, durou apenas cerca de dois anos. João Baptista foi o último companheiro da compositora Chiquinha Gonzaga, que, sendo 36 anos mais velha que seu consorte, o adotou como filho a fim de evitar maiores atritos com a conservadora sociedade da época.

A Fábrica de Discos Popular funcionou na Rua Barão do Bom Retiro 475, no Rio de Janeiro, nos fundos da residência em que moravam Chiquinha Gonzaga e João Baptista. Dois selos foram editados, Popular e Jurity, este último especialmente para loja de instrumentos musicais A Guitarra de Prata. Mas infelizmente poucos discos lançados por esta fábrica chegaram aos dias de hoje e sua história ainda está longe de ser contada, dada uma completa falta de documentação.

Minha conversa com Gilberto começou quando ele me indagou com surpresa sobre gravações do Vicente Celestino em disco Popular. Depois me disse que tinha em seu poder um disco da Fábrica Popular bastante arranhado, que havia sofrido muito os desgastes do tempo. Ouviam-se praticamente só chiados ao rodá-lo em uma vitrola. Piorava sua identificação o fato do selo do disco estar trocado, o que acontecia freqüentemente nesta fase inicial da indústria fonográfica no Brasil. Ambos os lados do disco portavam um selo idêntico, referente a uma polca chamada Plicéia, contudo, esta polca não estava gravada no disco. Ao longo da conversa, Gilberto me contou que na cera do disco, na região da margem interna, estava gravado a estilete de um lado “F. Gonzaga” e do outro lado “Fca Gonzaga”. Seria Francisca Gonzaga?

Era bem comum os discos deste período terem uma introdução falada, na qual o próprio intérprete ou um técnico do estúdio anunciava o que seria interpretado. E neste disco havia uma introdução como esta, contudo, como a gravação estava extremamente precária, passamos um bom tempo tentando decifrar as palavras ditas ali. No dia seguinte, depois de ansiedades, surpresas, euforias e depois de incluir outras pessoas na conversa, não havia mais dúvidas: eram duas gravações solos de piano da Chiquinha Gonzaga. Além disso, não há porque ter muita dúvida de que quem anunciava a música na introdução falada do disco era a própria intérprete. As músicas gravadas eram a habanera “Argentina” e a polca “Rosário”, editadas posteriormente com nomes distintos, respectivamente, “Chi” e “Cananea”.

Esta descoberta foi fantástica por que o piano da Chiquinha Gonzaga era conhecido apenas por gravações em um conjunto chamado Grupo da Chiquinha Gonzaga, que gravou em disco Columbia e na Casa Edison, com o selo Odeon. Nestas gravações, o solista foi o flautista Antônio Maria Passos, que tocava com vários outros instrumentistas, de forma que mal se ouve o piano da Chiquinha. Era inteiramente desconhecido que a Chiquinha Gonzaga tinha deixado registros gravados solando ao piano. Então vem a generosidade do Gilberto, que colocou a disposição na mesma hora as gravações, com a convicção de que uma descoberta destas deveria ser divulgada amplamente.

Na segunda-feira, dia 30 de março de 2015, acompanhei o Gilberto em uma visita ao Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, para gravar o disco da Chiquinha na sofisticada aparelhagem daquela instituição. A única contrapartida que o Gilberto pediu foi que as gravações ficassem abertamente disponíveis para o público em geral. O Instituto Moreira Salles, embora seja uma instituição particular, tem disponibilizado digitalizações de boa parte de seu acervo de gravações em disco de 78rpm ao público e se tornado a grande referência da memória da música brasileira deste período. Saímos de lá com a certeza de que se uma descoberta similar fosse feita, por exemplo, sobre um personagem do jazz norte-americano, seria uma notícia de âmbito mundial. E nós, brasileiros, encararíamos com naturalidade que fosse notícia nos grandes jornais do Brasil, nos horários nobres de televisão e da nossa grande mídia. Mas o fato que aqui narramos foi uma descoberta fantástica sobre nossa Chiquinha Gonzaga, umas das compositoras populares mais importantes que já tivemos e temos certeza que isto não será noticiado nem valorizado. Embora nossa música seja respeitada mundo afora, internamente vemos a falta de auto-estima do nosso povo e o descaso de quem tem o poder nas mãos e teria faculdade de agir positivamente em prol de nossa cultura e memória. Então, certamente pouco será falado sobre as gravações solo da Chiquinha Gonzaga, talvez em um âmbito acadêmico se comente, talvez alguns colecionadores fiquem com olho grande, nada mais do que isto.

Fica aqui um registro, mais uma vez, da fundamental importância dos apaixonados colecionadores para o resgate de nossa memória musical e os agradecimentos ao Gilberto Inácio Gonçalves.