Especial

Samba: a perpétua renovação

Por Daniel Brazil - 23/03/2007

O samba não se renova. Quantas vezes não ouvimos esta frase, proferida em botecos e salas acadêmicas, geralmente por supostos arautos da modernidade?

Os argumentos podem ser frouxos ou fundamentados, variando conforme a circunstância e o interlocutor. Mas uma avaliação correta desta afirmação só pode ser feita após refletirmos sobre a permanência dos gêneros musicais predominantes no século XX nos dias de hoje. E isso não se refere só ao Brasil, certamente.

Desde os anos 1950, com o crescimento exponencial dos meios de comunicação, principalmente a televisão, a permeabilidade entre culturas distintas foi fortemente ampliada. O impacto destas transformações, no campo musical, se deu em escala mundial. O rock influenciou o reggae, o blues se misturou com o folk inglês, a canção de protesto se tornou poliglota, e o jazz se cruzou com o samba, gerando a bossa nova. Foi a primeira grande renovação estrutural do samba, desde que este se afastou do maxixe, passou pelas escolas e orquestras, se dividiu em sub-gêneros, como samba-enredo, samba-canção, samba-de-roda, pagode, etc.

Surge aí a primeira dificuldade. Qual samba não se modernizou? O samba não é um só. Dizer que o samba-canção não evoluiu é uma coisa (discutível, se levarmos em conta a amplitude temática, o alargamento do horizonte poético, a incorporação timbrística de novos instrumentos). Afirmar que o samba-enredo não se modernizou é coisa bem diferente. Evoluiu tecnica e formalmente (sem entrar em juízos de valor). Ninguém confunde um samba-enredo atual com um dos anos 60.

É certo que algumas correntes mantêm fidelidade às origens, enquanto outras desapareceram. Existem sambas de diferente sotaque em regiões diferentes do país. As primeiras gravações dos caipiras paulistas, como Raul Torres, João Pacífico, Capitão Furtado, Alvarenga e Ranchinho, revelaram um tipo de samba sacudido e bem humorado, puxado pela viola. Esta ramificação do samba parece extinta, mas os sambas nordestinos da mesma época, puxados pelas emboladas de Manezinho Araújo, vingaram na voz de Jackson do Pandeiro na forma de rojão, e influenciam até hoje muita gente boa, sendo reinventado nos anos 70 pelos Novos Baianos, nos 80 pelo pessoal do Mangue Beat e no século XXI pelos grupos nordestinos contemporâneos, que produzem um samba estilizado com forte acento percussivo e eletrificado.

Claro que Jorge Ben, antes de virar Benjor, já havia indicado este caminho, lá nos anos 60. Um samba “esquema novo”, que flertava com o soul e o funk, e que abriu uma trilha própria na música brasileira, com vários seguidores. Num estilo que se convencionou chamar de sambalanço, e posteriormente, samba-rock, uma série de artistas arriscou um gingado. Grupos vocais como os Incríveis, Mutantes e Fevers, intérpretes como Simonal, Luiz Vagner, Bebeto e Tim Maia, arranjadores como Erlon Chaves, José Briamonte e Amilton Godoy (Zimbo Trio). No exterior, com diferentes pegadas, Baden Powell, Moacyr Santos e Sérgio Mendes lapidaram ainda mais a cara do samba, revelando novos brilhos.

Os grandes festivais de música dos anos 60 e 70 foram férteis em experimentações vinculadas ao samba. A influência da imagem televisiva sobre o gênero foi marcante, determinando o caráter cênico de algumas apresentações. Só Quero Mocotó, de Erlon Chaves, ou a performance de Maria Alcina (Fio Maravilha) foram marcos na história musical do Maracanãzinho. A televisão colorida, a partir dos anos 70, vai influir de forma contundente os desfiles de escolas de samba, causando alterações essenciais na estrutura dos sambas-enredo.

Longe das quadras, autores do porte de um Paulinho da Viola também cruzaram limites. Cantar um samba acompanhado de caixa de fósforos e cravo em 1971 (Para Ver as Meninas) pode ser visto como um ato de ousadia frente à tradição. Em outras obras do período Paulinho utiliza tensões harmônicas incomuns, distendendo os nervos da tradição. Tom Zé, muito antes de bulir nas ancas da velha senhora, já fazia da parceria com Elton Medeiros – pilar do samba tradicional – um trampolim para criativas evoluções no disco Estudando o Samba, de 1975. Nesta década, as rádios mandavam ver os sucessos de Marcos Valle e Ivan Lins, calcados na batida primordial do samba, mas buscando nos teclados uma sonoridade mais pop. E mesmo um cultor do samba clássico, como Chico Buarque, contribuiu pontualmente com pinceladas que elevaram o patamar de qualidade para os aspirantes ao título de sambista.

É também nos anos 70 que surge uma grande dupla de renovadores: João Bosco e Aldir Blanc. O violão do mineiro Bosco explorava com maestria todas as modalidades conhecidas de samba, apoiados nas ardilosas crônicas em verso do carioca Aldir. Posteriormente, Bosco se aprofunda na matriz afro-rítmica, criando complexas texturas onde a voz também soa como instrumento percussivo. Pouco depois, com influência bem mais restrita, os paulistas do grupo Rumo investigaram as possibilidades do samba, principalmente através de Luiz Tatit. Na dita vanguarda paulistana, o eclético Itamar Assumpção se destacou como fino criador de neo-sambas, ainda não totalmente assimilados.

O alagoano Djavan também surgiu nos festivais. Sua reinvenção do samba é notável, nos primeiros discos, tendo conquistado inúmeros seguidores (e diluidores). Quase-sambistas, como Luiz Melodia, fizeram a ponte entre o morro do Estácio e os tropicalistas, que revisitavam o samba de forma periódica, introduzindo pequenas alterações na sintaxe. Principalmente Gilberto Gil, que grava em 1978 uma curiosa Antologia do Samba Choro, dividindo faixas com o paulista Germano Mathias. Da Bahia também, refinado cultor e reinventor da chula e do samba do Recôncavo, Roberto Mendes é um grande criador, violonista exímio e inventivo. Em alguns momentos evidencia a ligação musical Cuba-Brasil, que até um defensor do samba tradicional como Nei Lopes reconhece e alardeia, abrindo a porta para as sonoridades caribenhas.

As mulheres exercem papel fundamental na definição de novas formas de samba. Joyce, que começou na praia da bossa nova, delineia um jeito feminino de fazer samba, e marcou posição como compositora. Grandes intérpretes, como Elza Soares e Elis Regina, expandiram os limites expressivos e criaram um jeito moderno de cantar, diferente das rodas de samba. Outras cantoras, como Leny Andrade, tiveram referências jazzísticas, e se tornaram o lado vocal da turma braba que incendiava as boates cariocas nos anos 60: Tamba Trio, Luiz Carlos Vinhas, Edson Machado, Meirelles e Copa 5, Dom Um Romão, João Donato, Eumir Deodato e mais um punhado de craques. Estes instrumentistas representam, para o samba, o que o bebop representa para o jazz tradicional: invenção acelerada e enérgica, distanciando-se do formato canção.

E toda essa invenção permanece viva, nas novas gerações? Não do mesmo jeito, é claro, mas o leque continua aberto. As correntes tradicionais do samba, depois de um certo refluxo, se acomodaram aos novos nichos da indústria fonográfica, e mantêm produção constante. A grande novidade dos anos 80 foi o estabelecimento do pagode como fórmula comercial bem sucedida, calcado em nomes como Almir Guineto, Zeca Pagodinho, Jorge Aragão, Sombrinha e Arlindo Cruz, egressos do grupo Fundo de Quintal. Não se trata propriamente de invenção, mas nova encadernação de uma modalidade de samba.

A invenção está, como na década de 60, nas mãos de gente que absorve outras linguagens musicais, promovendo misturas e decantações de diferentes matrizes. A aproximação com rap e do hip hop evidencia o trabalho do carioca Marcelo D2 e o paulista Rappin’ Hood. Os pernambucanos continuam provocativos, seja na continuação no discurso alucinado de homem-caranguejo, com o Mundo Livre S/A, seja na dicção macia de um Junio Barreto. Filhos de sambistas famosos, Jairzinho Oliveira, Max de Castro e Simoninha arriscam misturas com a tecno-modernidade, nem sempre bem digeridos. Enquanto em São Paulo a herança de Benjor é trabalhada por Paulo Padilha, Mattoli e o Clube do Balanço, no Rio grupos como Pedro Luis e a Parede se esforçam pra bagunçar as fronteiras do ritmo. E surgem novas (porta)vozes femininas, com um pé no samba, como a quase-carioca Roberta Sá e a maranhense Rita Ribeiro, e outro no mundo, como Fernanda Porto e seu tecno-samba, e Bebel Gilberto, com sua bossa-lounge, todas atentas às sutilezas do estilo.

Enfim, experimentações em torno do samba continuam rolando. Quem afirma que “o samba não se renova” apenas repete um chavão desatualizado. Para o bem e para o mal, as mutações (naturais ou transgênicas) continuam em movimento. Muito do que se convencionou chamar de MPB é, na verdade, variação, adaptação e tradução do caudaloso samba. Um roqueiro empedernido pode fazer coro com um sambista da velha guarda e dizer que tudo isso é firula e não leva a nada. É natural. Em qualquer época da história da música, as inovações foram vistas primeiro com desconfiança. E, convenhamos, um velho roqueiro e um velho sambista são muito parecidos em uma coisa: no conservadorismo estético.

Tem gente boa que continua gostando do samba “tradicional”, cantados nas rodas, quadras e botecos. Assim com outros preferem o Traditional Jazz de Nova Orleans, as óperas de Verdi, Rossini e Donizetti ou o rock dos anos 70. O bom de vivermos no século XXI é podermos espalhar nossas preferências não apenas geograficamente, mas também no tempo. Só não podemos negar a evidência de que todos estes gêneros estão em perpétua renovação.