Especial

O som dos negros e judeus na América

Por Marcio Paschoal* - 14/08/2009

Poucos sabem que uma das músicas preferidas da imortal Billie Holiday era uma composição de um professor judeu do ensino médio do Bronx, em NY, Abel Meeropolum.

A canção, “Strange fruit”, tem em seus versos todo o repúdio ao racismo e traduz o que o professor viu, numa tarde mormacenta do início dos anos 30: dois negros americanos que pendiam de uma árvore depois de linchados por uma multidão em Indiana, sul dos Estados Unidos.

A letra, forte e indignada, fala da cena horrível e das atrocidades que os homens ainda podem ser capazes de fazer: "Eis uma fruta / Pra que o vento sugue / Pra que um corvo puxe / Pra que a chuva enrugue / Pra que o sol resseque / Pra que o chão deglutaEis uma estranha / E amarga fruta."

Billie teve imensa dificuldade em poder gravar a música, já que os produtores de sua gravadora (Columbia Records) temiam possíveis represálias.

O próprio autor, escondeu-se através de pseudônimo, no caso, Lewis Allanele.

Os historiadores da cantora registram o fato de ela constantemente encerrar seus shows ao vivo com a canção. Billie exigia que os garçons parassem de servir e que as luzes se apagassem. Não à toa, "Strange Fruit", na voz insidiosa de Miss Holiday, se transformou rapidamente num hino contra o racismo.

Baseado nessa, e em outras análogas histórias, Carlos Rennó e Jaques Morelenbaum reúnem astros da MPB para interpretar obras que brancos judeus compuseram e que se transformaram em grandes clássicos da música negra americana.

O produtor Carlos Rennó escreveu as versões, e o maestro Morelenbaum ficou encarregado dos arranjos. O CD, com o nome de “Nego”, apresenta, entre outros destaques, clássicos como "My Romance" com Gal e Carlinhos Brown; "Over the Rainbow" com Zélia Duncan; e "Bewitched" com Maria Rita. Já "Strange Fruit" ficou com o cantor Seu Jorge.

De "Porgy and Bess", a ópera negra de Gershwin, foi selecionada a clássica "Summertime", na voz de Erasmo Carlos.

Uma curiosidade, fruto da pesquisa de Rennó: Frank Sinatra, que gravou "Old Man River", foi homenageado por Ray Charles, que subiu ao palco e disse: "Frank, você uma vez juntou um monte de músicos brancos num estúdio branco para tocar e cantar essa música negra que eu agora vou fazer ‘in my way’." O trocadilho perfeito só não veio com a informação completa de que a música negra tinha sido feita por brancos judeus (Jerome Kern e Oscar Hammerstein). Esta canção, no CD, está a cargo de João Bosco. "Preto dá duro no Mississippi / Duro pro branco poder brincar / Puxando barco não descansando / Até o juízo final chegar", diz parte da letra.

Entre as décadas de 20 e 40, muito do que há de melhor no cancioneiro popular norte-americano foi produzido. Obras que ficarão para sempre na história das canções. E a maior parte do primeiro time de músicos era formada por judeus de origem simples, que descendiam de estrangeiros vindos da Europa: Gershwin, Irving Berlin, Richard Rodgers e Lorenz Hart são alguns nomes. A explicação para essa relação profunda, onde negros e judeus dos EUA se identificaram tanto, pode ser entendida pela origem de ambos, gente humilde e outsiders. A música era uma forma de desabafo e posterior identificação, quando músicos judeus assimilaram a música e a musicalidade dos negros.

Trabalhando juntos com MPB há longo tempo, a dupla Rennó/Morelenbaum planeja o lançamento do CD “Nego” para agosto.
 

* Marcio Paschoal é escritor.