Especial

O pirata e a balzaquiana

Por Irajá Menezes - 24/05/2022

Tava eu aqui lembrando, quase aleatoriamente, de duas marchinhas antigas de Carnaval: 'Pirata da Perna de Pau' e a 'Balzaquiana'.

A primeira, composição de João de Barro, lançada em 1947 por Nuno Roland, a segunda, parceria de Wilson Batista e Nássara, gravada por Jorge Goulart em 1949.
As duas têm estruturas semelhantes. Abrem estrepitosamente, o 'Pirata' com o próprio refrão da música:

Eu sou o pirata da perna de pau
Do olho de vidro, da cara de mau

a 'Balzaquiana' com uma parte A que tem força equivalente a um refrão, apenas mais longa.

Não quero broto, não quero, não quero não
Não sou garoto pra viver mais de ilusão
Sete dias na semana
Eu preciso ver minha balzaquiana

Trilhando um percurso típico das marchinhas, a parte B escrita por Batista e Nássara e a estrofe que complementa o refrão de João de Barro cumprem a tarefa de desenvolver as ideias propostas no início.
Marchinhas de Carnaval são curiosamente cartesianas. Expõem o ponto de partida (sempre um tanto amalucado) e passam a dar contornos mais nítidos aos personagens, enriquecendo o tema com detalhes, a narrativa ganhando densidade.

Excelente exemplo desta técnica de desenvolvimento de texto está em 'O Teu Cabelo não Nega'. A cada uma das três estrofes, a musa vai se delineando com maior precisão.

Por ser essa mistura de texto narrativo-dissertativo, crônica de costumes e piada, a marchinha depende muito de uma conclusão marcante, um arremate memorável, uma chave-de-ouro. A 'Balzaquiana' consegue o efeito com uma rima bem achada:

Balzac tirou na pinta
Mulher só depois dos trinta
O 'Pirata da Perna de Pau' vai mais longe. O verso final, além de resolver o enredo com precisão, também consegue surpreender:

Por isso, se outro pirata
Tenta a abordagem, eu pego o facão
E grito do alto da popa:
Ôpa! Homem, não!

O resultado como um todo é mais inventivo e o efeito cômico de "Ôpa! Homem, não", menos comum.

Eis aí uma questão interessante sobre a música popular. A rigor, ela é fruto do trabalho de alguém que procura se comunicar com eficácia. Para isso, lança-se mão de recursos de linguagem conhecidos, testados e aprovados.

Em resumo, a música popular opera sempre num grau alto de redundância. Usa e abusa dos clichês, dos formatos consagrados, da repetição ostensiva de ideias já vistas, dos estereótipos formais.
Dentro de limites tão estritos, por vezes, brilha a fagulha do 'génio', como costumam dizer os portugueses.

Em geral, são lampejos. Pontos focais. Na maior parte do tempo a composição popular permanece submersa nas convenções de gênero.

No Brasil, Antonio Carlos Jobim é o artista de música popular que mais firmemente se dedicou à questão da forma. Jobim faz uso de procedimentos que, corriqueiros no âmbito da chamada composição erudita, trazem para o cancioneiro nacional um rigor quase inédito. Seus seguidores imediatos são Edu Lobo e Chico Buarque, principalmente quando trabalham em parceria.

A obra do maestro é o contraponto às amarras das fórmulas prontas e ao espontaneísmo que o senso comum define como essenciais à música popular.

Ouça 'Balzaquiana', com Jorge Goulart
https://youtu.be/pEJLPP-i8Fk
Ouça 'Pirata da Perna de Pau', com Nuno Roland
https://youtu.be/tCD-3A3sYlI