Especial

O Pacto dos Violeiros

Por Daniel Brazil - 29/06/2010

Estamos no mês de junho, época de festas, fogueiras, quadrilhas, causos e cantorias que costumam se estender até o mês de julho. No Nordeste, a sanfona impera, secundada pelo triângulo e a zabumba. No sul e centro-oeste, a sanfona muda de acompanhantes, como bem mostrou o belo filme O Milagre de Santa Luzia (Sérgio Roizenblit, 2009). E a viola entra pra dividir os holofotes, em muita roda caipira, de Norte a Sul do país. Por conta disso, resolvi recontar uma história de violeiros. Se achegue, puxe um banquinho e vai ouvindo...

Vem de uma longa tradição, cultivada pelos músicos de várias épocas e culturas, a associação do talento de exímios instrumentistas com poderes sobrenaturais.

No universo rural brasileiro, onde impera a nossa viola caipira, não faltam histórias de pactos bem ou mal-sucedidos, onde o Demo, o Diabo, o Coisa-Ruim, é um mestre que vende caro seus ensinamentos. Geralmente é a alma do indivíduo ou sete anos de sua vida que são negociados em troca de uma instantânea transferência de conhecimento, que faz o violeiro sair tocando de forma assombrosa.

Desde a Idade Média, quando músicos ambulantes e ciganos perambulavam de castelo em castelo tocando por um prato de comida, o virtuosismo instrumental chamava a atenção e a inveja dos maledicentes, que se apressavam a divulgar histórias sobre o tal pacto. Numa época em que a simples suspeita era motivo para lançar alguém à fogueira, tornava-se uma maneira eficiente de eliminar um rival, por exemplo.

Talvez o personagem mais notório da história da música a carregar esta fama tenha sido o violinista Niccolò Paganini (1782/1840), um italiano que encantou platéias de toda a Europa. Sua figura estranha, muito magro e alto, sempre de preto, e os contorcionismos e caretas que fazia enquanto tocava, deixaram em muitos a impressão de que estava “possuído”. Compositor inspirado, escreveu peças de difícil execução (os Capriccios, para violino solo), que fizeram muitos aprendizes desistirem do violino ou saírem correndo atrás de receitas do tal pacto.

Curiosamente, a lenda sempre surge em torno dos instrumentos de cordas. Sopros, teclados ou percussão não parecem ter a preferência do Capeta, que talvez prefira dar corda para que os próprios músicos se enforquem.

No Brasil, a viola caipira tornou-se a herdeira desta tradição. Faz parte do repertório de todo bom violeiro uma escabrosa história de pacto com o Sete-Peles. Segurar uma cobra-coral venenosa sobre o túmulo de um afamado violeiro, à meia noite de uma Sexta-Feira Santa, deixando que ela se enrosque por todos os seus dedos, é receita infalível. Desde que ela não te pique, é óbvio!

Invocar o Senhor das Trevas numa encruzilhada à meia-noite é o passo inicial, aqui ou no longínquo Mississipi, onde os velhos tocadores de blues também sabem dessas coisas. O filme “A Encruzilhada” (Crossroads), com o jovem Ralph Macchio, é a melhor transcrição feita para o cinema sobre esta obscura aliança.

No disco Rio Abaixo, do violeiro Paulo Freire, é ensinada uma receita de pacto que inclui enfiar a mão no buraco da parede de taipa de uma igrejinha deserta à meia noite, invocar o Tinhoso e sentir uma mão peluda agarrar e quebrar todos os seus dedos. E isso é só a primeira parte, pois em seguida encontra-se com o Cão, em pessoa! Recomendo aos interessados a audição completa do CD, muito bom, por sinal.

Há violas que tocam sozinhas no meio da noite, alimentando a lenda. Mas, como certos pianos abandonados em casarões e castelos, o motivo costuma ser mais corriqueiro: os passeios noturnos de pequenos roedores, que se assustam ao pisar numa corda e disparam em correria, provocando arpejos e arrepios.

Para neutralizar a influência do Chifrudo, os violeiros tornam-se devotos de S. Gonçalo do Amarante, padroeiro sempre representado com uma viola nas mãos e cultuado em várias festas populares brasileiras. Aliás, quando avistar fitas coloridas amarradas no braço de uma viola, pode estar certo de que não é só enfeite. Tem uma função mística, de proteção, e cada cor tem um significado. É como colocar um guizo de cascavel dentro da viola: afasta o mau-olhado e melhora o som do instrumento, dizem. Essa receita você pode fazer sem medo, não precisa de nenhum pacto. E viva S. Gonçalo, São João, São Pedro e Santo Antônio!