Especial

O compositor Altamiro Carrilho

Por Daniel Brazil - 07/01/2008

Todo mundo conhece o genial flautista Altamiro Carrilho, craque do sopro em flautas, pífanos e flautins. Afinal, o homem está na estrada desde mil novecentos e bolinha, e foi do coreto ao Municipal, passando por palácios, muquifos e programas de TV.

Mas quem conhece, de fato, o Altamiro compositor? Alguém aí vai lembrar de Bem Brasil, com suas quebradas de ritmo. Talvez uma ou outra tocada pelo próprio, porque outros instrumentistas poucas vezes ousam mergulhar na sua obra. Medo da dificuldade ou de comparações? Provavelmente desconhecimento.

Pois um grupo de músicos de São Paulo resolveu encarar o desafio. Claro que não tem amador na jogada: é tudo profissa, com mais hora de boteco que urubu de vôo. O nome do bando já entrega o naipe: Ó do Borogodó. Simplesmente o mais musical dos bares de choro e samba da Vila Madalena. Bagunçado, pequeno, serviço caótico, preços discutíveis, mas... que música!

Pois o quarteto nasceu naquelas mesas, ponto de encontro dos melhores chorões brasileiros, clássicos e modernos. Formado pelo clarinetista Alexandre Ribeiro, o violonista Lula Gama, Ildo Silva no cavaco e Roberta Valente na percussão, mostra desembaraço e concisão nas execuções, sem firulas exibicionistas. Mas, peraí... não tem flauta?

Eis a primeira surpresa do CD (Grupo Ó do Borogodó Interpreta Altamiro Carrilho, Lua Music, 2007). O clarinete do jovem Alexandre se reveza com os demais músicos numa leitura preciosa de obras que há muito tempo não se encontravam em catálogo. Mas o grupo teve a sabedoria de convidar um time de cobras para colorir cada faixa.

Atraente é o nome da peça de abertura, onde violão e clarineta se revezam nas três partes de um choro que faz lembrar os bons momentos de dupla Pixinguinha/Benedito Lacerda. Também clássico é Esquerdinha na Gafieira, que conta com o arranjo e o sax de João Poleto. Entre elas surge o exótico e divertido Baião na Síria, onde a percussão de Caíto Marcondes acentua o sotaque orientalista.

Bem Brasil recebe uma leitura competente, com o violão de Lula Gama terçando notas com o 7 cordas de Zé Barbeiro e desafiando o pandeiro de Roberta nos breques. Carioquinhas no Choro é levado pelo quarteto com evidente prazer, e as mudanças de andamento, característica de Altamiro, destacam a integração entre Alexandre e Lula.

A sessão-seresta começa na sexta faixa, com Lyra, uma valsa-choro com jeito de Callado, lindamente arranjada por Ruy Weber, que contribui com seu violão de sete cordas. A voz parruda de João Macacão preenche a faixa seguinte, Meu Sonho É Você, com letra de Atila Nunes, onde seu violão tarimbado borda os baixos do samba-canção.

Nos primeiros acordes da valsa Guaracy reconhecemos o bandolim estupendo de Isaías, acompanhado por seu irmão Israel. As cordas envolvem suavemente o clarinete, iluminando o fraseado dolente e sofisticado.

Em Vida Apertada o grupo volta a acelerar o andamento, com Alexandre assumindo o clarone e deixando o clarinete para Stanley Carvalho. Delícia de dueto, duas gerações de sopros mostrando porque o choro continua vivíssimo. O compositor Carrilho, mais uma vez surpreende, com uma melodia moderna e um final que lembra... Guinga!

Elegante é tocado só pelo quarteto, com direito a solo de Ildo Silva no cavaquinho. A percussão acentua o sabor nordestino deste choro-baião, incorporando um triângulo preciso.

A faixa 11 traz a participação mais especial de todas. Altamiro assume orgulhoso a frente do grupo, e manda ver o inédito choro puro-sangue Não Resta a Menor Dúvida. E quem vai discutir? Na soberania de seus 83 anos, o homem mantém o sopro e timbre dos 63, que eram iguais aos de 43, e com uma sabedoria que ele não tinha (acho) aos 23...

Em Perdão, Amor, a turma cai no samba, e com a voz agradável de Verônica Ferriani conhecemos mais uma face do compositor. O mínimo que podemos dizer é que se tivesse largado o choro e só feito sambas na vida, teria sido um dos grandes nomes do gênero.

A penúltima faixa retoma o tempero nordestino, puxada pelo acordeon de Bombarda e a percussão de Zezinho Pitoco, companheiros habituais de Antônio Nóbrega. É a preparação perfeita para a animada saideira Deixa o Breque Para Mim, onde o jovem flautista Rodrigo Y Castro novamente convoca Zé Barbeiro para os incríveis floreios da melodia.

Não há muito que dizer de um flautista que já foi considerado um dos maiores do mundo, mas há muito que conhecer do compositor Altamiro Carrilho, que passeou por diversos gêneros e tem boa parte da obra ainda inédita. Como diz Roberta Valente, também produtora do disco, “Escolhi, com sofrimento, só essas 14. Altamiro está no mesmo nível que Pixinguinha e Jacob do Bandolim, por exemplo.”

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