Especial

O adeus a Paulo Vanzolini

Por Daniel Brazil - 29/04/2013

“Quando eu for, eu vou sem pena/ pena vai ter quem ficar.” Estes versos são de um dos últimos sambas – talvez o derradeiro - do mestre Paulo Vanzolini (1924-2013), que morreu no dia 28 de abril, três dias depois de completar 89 anos. Mais que uma declaração de adeus, os versos diretos são um exemplo de sua enorme capacidade de comentar a vida com ironia e inteligência. O Brasil perdeu um de seus letristas mais inspirados e originais, que nunca teve o devido reconhecimento como um dos maiores compositores de todos os tempos.


Para o resto do país, era identificado como um “sambista paulista”. De fato, Vanzolini foi, junto com Adoniran Barbosa, o mais inspirado cronista das comédias e tragédias do cidadão comum de São Paulo. Uma audição mais atenta de sua obra revela, porém, que o homem era um grande brasileiro, e dominava com perfeição os metros e rimas de todos os sotaques. Considerava sua melhor letra a genial Capoeira do Arnaldo, composição inspirada nos repentes nordestinos, com cinco inefáveis estrofes com dez versos cada.


Esta característica provavelmente foi aprimorada durante suas inúmeras viagens como cientista. O renomado zoólogo se embrenhou muitas vezes pela floresta amazônica, percorreu cerrados, caatingas e pantanais, dormiu em rede ao lado da fogueira, enfrentou muito mosquito, cobra e aranha. Especializado em répteis, descobriu e classificou novas espécies. Cientista reconhecido e premiado pelos seus pares, nunca deixou de lado a alma boêmia.


Nas muitas noites passadas do sertão à luz da lua, ouvia com atenção as violas e sanfonas rudes dos caboclos com quem convivia. Apreciador de uma cachacinha, doutor Paulo era tido como grande improvisador de versos, e participava com prazer das rodas de desafio, ganhando o respeito e admiração dos músicos. Uma de suas contribuições para o cancioneiro nacional foi ter recolhido, anotado e “arranjado” a linda toada mateira Cuitelinho: “Os zóio se enche dágua/ que até a vista se atrapaia, ai, ai...”.


Vanzolini transitou pelo choro (colocou letra em Pedacinhos do Céu, de Waldyr  Azevedo, por exemplo), por valsas e baiões, mas adotou como gênero favorito o samba. Frequentador assíduo de uma boa roda de boteco, compunha sem tocar nenhum instrumento. Ora sozinho, ora com parceiros como Eduardo Gudin, Toquinho, Paulinho Nogueira ou Elton Medeiros, o homem criou um cintilante repertório de obras-primas, onde o encaixe entre letra e música é sempre perfeito. Algumas canções demoravam mais de um ano sendo buriladas. Chegou a brigar certa vez com o amigo Toquinho por esse não ter aguentado esperar os “finalmente” e ter gravado a belíssima Boca da Noite sem sua autorização. Ouça a gravação e tente descobrir onde a letra parece inacabada, poderia soar melhor... é impossível!


Não gostava do primeiro sucesso, Ronda. Foi eternamente agradecido a Inezita Barroso por tê-la gravado, em 1953, mas considerava uma canção triste, e não compreendia a razão do enorme sucesso (ou fingia não compreender). Ronda só virou sucesso radiofônico anos depois, através de Márcia, e posteriormente de Maria Bethania. Não gostou do fato de Caetano citar Ronda na canção Sampa. “É plágio”, dizia, com rigor acadêmico. É folclórica a antipatia que o ranzinza doutor Paulo nutria pelos tropicalistas, por sinal.


O maior sucesso, o primeiro de fato a estourar nas paradas foi Volta Por Cima, já nos anos 60, na voz de Noite Ilustrada.  O Brasil todo sabe de cor os versos “levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”, que um engraçadinho certa vez classificou como “samba de auto-ajuda”. Obviamente, Doutor Paulo detestou a brincadeira...


Mas o homem fazia tipo de rabugento, também. Com os amigos era cordial e bem humorado. O fino humor que atravessa a maior parte de suas letras mostra um espírito arguto, sempre atrás da expressão mais inusitada, do verso surpreendente, da imagem original, sem cair em invencionices. Listar as obras-primas seria cansativo, mas sambas como Praça Clóvis, Juízo Final, Mente, Cravo Branco ou Samba Erudito são maravilhas de síntese musical, que o colocam no patamar mais alto dos melhores cronistas da música popular brasileira.


Em 2002 foi lançada a caixa Acerto de Contas (quer nome mais perfeito?) pela Biscoito Fino, com 52 composições escolhidas por ele mesmo, junto com a cantora Ana Bernardo, sua segunda mulher. Intérpretes do calibre de Chico Buarque, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Virgínia Rosa, Cristina Buarque, Gudin, Carlinhos Vergueiro e outros craques se deliciam eternizando as geniais criações do mestre. Pra surpresa de muitos, o homem deixou de fora alguns sambas que a maioria dos músicos daria um braço para ter composto.


Aliás, Vanzolini costumava dizer que casou com a filha do demônio. Ana Bernardo é, de fato, filha de Arthur Bernardo, um dos fundadores dos Demônios da Garoa. Tradição com tradição, paulista, sim senhor!, e com toda a riqueza da mistura musical que a cidade representa. Era um tradicionalista? Ao seu modo, Vanzolini renovou o samba, mas certamente era refratário às modernices do gênero. Não à toa, gostava muito de Adoniran, a quem homenageou com um delicioso samba chamado Seu Barbosa.


Enfim, lá se foi seu Paulo, batucar no andar de cima. Vamos torcer para que Acerto de Contas, hoje esgotado, volte às lojas, com urgência. Para que as novas gerações tomem contato com a obra desse sábio erudito, mestre da linguagem popular.
Eu saí da minha terra
Por ter sina viajeira
Com dois meses de viagem
Eu vivi uma vida inteira.
Saí brabo, cheguei manso,
Macho da mesma maneira.
Estrada foi boa mestra,
Me deu lição verdadeira:
Coragem não está no grito,
Nem riqueza na algibeira.
E os pecados de domingo,
Quem paga é segunda-feira...

(Capoeira do Arnaldo, última estrofe).
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