Especial

Nei Lopes chuta o balde

Por Daniel Brazil - 09/07/2009

Definir Nei Lopes é tarefa inglória. O homem é coringa de muitas letras, em verso e prosa. Bamba de todas as rodas, criador de sambas impecáveis, gogó certeiro, garimpeiro de ouro negro, recriador de mitos urbanos, iluminador de recantos sombreados de nossa história.

Quando largou o canudo de doutor pra se dedicar ao samba, lá nos anos 70, mostrou que fazia direito. Sua parceria com o grande Wilson “Alicate” Moreira rendeu hinos como Senhora Liberdade, Goiabada Cascão e Gostoso Veneno, cantadas até hoje em rodas de todo o país.

Seu talento se esparramou por outras praias, indo quebrar em areias caribenhas e africanas. Pesquisador da diáspora negra, autor do Dicionário Banto do Brasil e mais uma estante inteira de títulos sobre a cultura afro-brasileira, Nei Lopes é também ativo blogueiro e assina artigos e colunas em vários jornais.

Não me pergunte como, mas ele ainda consegue arrumar tempo e inspiração para compor e lançar discos com regularidade. Em seu penúltimo disco, Partido ao Cubo (2004), entrelaçou o samba com a rumba, fazendo uma ponte entre os patrimônios musicais de Brasil e Cuba. Não por acaso, dois países onde a influência africana moldou uma cultura de exuberante musicalidade.

Nei Lopes lança agora seu novo CD, Chutando o Balde (Fina Flor, 2009). De volta ao gênero de origem, mistura humor, crítica e militância em sambas bem burilados. Amplia o leque de parceiros, que vai de Guinga a Zeca Pagodinho. Aqui, produzido pelo também parceiro Ruy Quaresma, o destaque é para a rapaziada do Quinteto em Branco e Preto. Assusta no início, ao entoar um rap, mas logo conserta e emenda um samba cheio de ironia. Sarcástico em faixas como Pala pra Trás, onde critica a mania de andar com o boné ao contrário, Nei Lopes não deixa a peteca cair. Em Samba de Fundamento, ridiculariza os oportunistas que surfam na onda do samba e batem no pandeiro “com mais ódio que amor”. Em Pombajira Halloween retrata certos grupinhos modernos, “fake/ tudo fashion, tudo teen”.

Mas não é apenas um disco de humor mal humorado. Há também o humor escancarado, onde o compositor coloca a lupa sobre personagens inusitados. O sambista que foi abduzido entre Saracuruna e Seropédica, o cachaceiro que incorpora Ruy Barbosa, o parceiro do finado Seu Libório, a marquesa que virou casca-grossa...

Nei é grande praticante da crônica urbana musicada, gênero praticado por craques como Wilson Batista, Geraldo Pereira, Lamartine Babo, Noel Rosa, Braguinha e Billy Blanco. Provavelmente, só Aldir Blanc retratou o Rio de Janeiro com a mesma mordacidade. Nei Lopes vai além, recriando de forma musical e literária a cultura de subúrbio, a mitologia da malandragem, o corredor de histórias que acompanha os trilhos da Central.

Usando o humor como arma, defende seus pontos de vista de forma radical, o que o transforma numa espécie de caroço no angu da música popular brasileira. O homem não faz média com a mediocridade, felizmente. Como afirma em Dicionário, “artista em meu ponto de vista / É quem cria e conquista / E que sabe que mesmo em capa de revista / Artista é artista, e mané é mané”. Doutor em samba, e abusado!