Especial

Música popular e religiosidade

Por Daniel Brazil - 09/11/2012

Dizem os estudiosos que a origem da música tem fundo religioso. Nas tribos mais primitivas, a música é utilizada em rituais sagrados, como sagrado era o trabalho, o nascimento, a morte, a colheita e a festa. Caça e pesca não tem cantoria, claro, senão o almoço fugiria...

Com a evolução (?) da humanidade, a música ganhou espaço nas atividades laicas. Não se sabe quando ocorreu esta passagem, mas sabemos que em muitas comunidades ainda persiste o caráter primordial. Provavelmente a festa foi o primeiro chamariz a estimular os “compositores” a criarem figuras rítmicas e melódicas que não se referissem diretamente aos deuses.

O amor foi provavelmente o segundo motivo. O grande escritor cubano Alejo Carpentier (1904-1980), que lia partitura e tocava vários instrumentos, colocou a questão da origem da música no romance Os Passos Perdidos, de forma maravilhosa. Mais que a imitação dos pássaros, um instinto vindo do coração faria o enamorado cantarolar nos ouvidos da amada. E vice versa.

Mas o sagrado está até hoje colado à experiência da fruição musical. A mais imaterial das artes, que desaparece assim que a última nota deixa de soar, tem algo de mágico, e isso foi aproveitado de muitas formas na história da humanidade. A circularidade da música modal fazia (e faz) os fiéis entrarem em transe, após algum tempo. A música tonal enriqueceu as possiblidades. Catedrais foram construídas para tornar a fruição acústica dos cantos gregorianos algo realmente... de outro mundo!

Vamos dar um salto agora para o século XXI. Após o Renascimento, o Barroco, o Romantismo, e todos os movimentos de autonomia da música em relação à(s) igreja(s), a ligação ainda persiste. E voltando para o universo da música popular brasileira, que é o nosso foco, temos um quadro bem curioso.

A música laica, safada, livre, ateia, seja lá como chamemos, até hoje divide espaço com a música de fundo religioso. Claro que o foco fundamental colocado por Carpentier ainda é válido. Mais de metade das canções são de amor, ou como dizem os especialistas, seguem a fórmula procuro um amor/amo meu amor/perdi meu amor. O restante dos temas fundamentais da humanidade (vida, morte, fome, guerra, inveja, ganância, alegria, escárnio, etc.) não chegam a preencher 20% da temática das canções.

No Brasil vivemos um fenômeno curioso. A música religiosa nunca deixou de existir, mas esteve restrita a templos e festejos típicos por muito tempo. O cristianismo dominante no país, principalmente através dos evangélicos, ganhou espaço nas rádios com o gospel. Que não é exatamente um gênero, mas um aproveitamento religioso de diversas formas existentes de música popular para celebrar os valores cristãos.

A crítica especializada, os amantes da MPB, os intelectuais e os acadêmicos geralmente torcem o nariz para essa vertente. De fato, os melhores (?) do ramo não costumam apresentar novidades formais, apenas executam de forma competente o invólucro sonoro para o seu proselitismo.

Porém (ah, porém...) a mesma crítica costuma tecer elogios à música de matriz africana, que celebra os deuses do candomblé e da umbanda. Mestres incontestáveis da música brasileira fizeram referência ou construíram parte de sua obra sobre este território sagrado. São tantos que até fica difícil enumerar. Os afro-sambas de Baden Powell e Vinicius, por exemplo, são considerados obras-primas do cancioneiro brasileiro. E muitos artistas pegaram o bonde do culto à africanidade religiosa: alguns verdadeiros criadores, como Caymmi, outros apenas diluidores.

Agora é que são elas. Por que falar de cristianismo é brega, e falar de candomblé é chique? Ambos não fazem, cada qual à sua maneira, proselitismo religioso? Roberto Carlos cantando Jesus Cristo é melhor ou pior que Clara Nunes cantando um ponto de umbanda? Por que raios (olha eu invocando os deuses...) a filosofia de Rousseau – filósofo do século XVIII que considerava o homem primitivo mais “puro” – contamina até hoje a nossa avaliação musical?

Acabo de ouvir um CD de talentosos músicos de São Paulo. Gente fina, culta, músicos maravilhosos. Elogiei muito o disco MetáMetá, ano passado. Lançaram agora, depois de brilhantes apresentações individuais e outros projetos estéticos, o Metal Metal. Está disponível para download aqui (http://kikodinucci.com.br/). Ao vivo deve ser inebriante, magnético, arrebatador. Algo a ver com o transe místico das tribos primitivas.

Ouvindo aqui em casa, em silêncio, me provocou esta reflexão. Confesso que me encheu o saco o culto às entidades do candomblé, mesmo moldadas por um instrumental instigante. Por que diabos (olha eu citando deuses malditos...) isso me soa como um gospel com maquiagem afro? As sociedades primitivas africanas estão entre as mais machistas do planeta, promovem a circuncisão feminina, guerreiam e se matam como qualquer europeu ou asiático, apesar de terem armas menos eficientes. Interesso-me pela música deles, não pelos seus valores religiosos!

É muito rico fazer música popular alimentada pela rica polirritmia africana, fundamental na formação da MPB, exaltando a sensualidade, a beleza, o sorriso, a dor, a perda, o desejo, todos os sentimentos humanos. O samba fez isso, muitas vezes. Mas quando isso começa a virar religião, o risco do botequim virar igreja (ou terreiro) é sério. Deus me livre!