Especial

Música em transe – uma reflexão

Por Irajá Menezes - 11/03/2022

1. Eu noto, principalmente entre as pessoas da minha geração, uma ansiedade persistente com os destinos da música popular no Brasil.

Quando digo que noto, assim em primeira pessoa, parece até que notei algo que pouca gente notou. Mas não, né? A estupefação é generalizada se a gente compara a música popular de 40, 50, ou 60 anos atrás com a produção atual.

Nos idos de 2015, o professor Vladimir Safatle publicou um artigo na Folha que levanta um ponto fundamental para essa questão: a música popular no sentido que as gerações mais velhas lhes dão, perdeu CENTRALIDADE.

Safatle tenta trazer à luz um fenômeno complexo: a música definida como de boa qualidade e a música definida como de má qualidade dividiam o mesmo espaço. O Programa do Chacrinha se consolidou como a síntese mais bem acabada desse ecletismo. Numa mesma tarde era possível ver passar Martinho da Vila e os Titãs, Chico Buarque e Márcio Greick. Mas o Chacrinha não era o único. O Pasquim entrevistava o Caetano e o Aguinaldo Timóteo. Nas mesmas rádios tocavam Belchior, Milton Nascimento, Gretchen e Odair José. E a mesma Elis que lançava suas músicas novas no Fantástico, dava longas entrevistas para a TV Educativa.

No segundo milênio, a segmentação do mercado empurrou a parte chique para a periferia do sistema e preencheu o espaço recém adquirido multiplicando o número de artistas da parte brega.

Os termos brega e chique são totalmente datados e tornou-se inviável usá-los a sério, se é que foi viável algum dia.

Impossível negar, no entanto, que brega versus chique traduziu, enquanto a gíria esteve na moda e ainda que de modo distorcido, uma discussão mais antiga e pertinente: o conflito entre alta cultura e baixa cultura.

Não cabe aqui colocar o referido conflito em discussão, bastando para o que quero demonstrar aceitar a assertiva do professor Safatle: fora dos canais mainstream de circulação, a música popular que remete ao que nos anos 50, 60 e 70 do século XX considerávamos de incontestável valor continua a ser produzida, divulgada e consumida. Perdeu, no entanto CENTRALIDADE. Habita, hoje, as franjas do sistema e não existem mais Chacrinha nem Pasquim.

2. Outro uspiano, Lorenzo Mammì, elaborou uma reflexão, publicada em livro no ano de 2017, que pode acrescentar um ponto ao que Safatle formulou. Reproduzo a seguir.

"Na década de 1960, o artista Robert Smithson disse que as redes de signos da cultura contemporânea chegariam a uma densidade tamanha que formariam uma casca lisa e uniforme, sobre a qual seria possível correr livremente em todas as direções, como num deserto incontaminado. A música popular brasileira talvez esteja chegando a uma situação similar. O cânone, que vai mais ou menos de Nazareth a Chico e Caetano, já se fechou. Pode sofrer um acréscimo aqui ou ali, mas na substância já está formado, e é um valor indiscutível e incontornável para qualquer um que não seja de todo surdo ou insensível. Forma um núcleo sólido, uma casca dura sobre a qual se pode correr à vontade. Desse ponto de vista, já não há mais diferença substancial entre, digamos, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes, Zélia Duncan e Chico César, José Miguel Wisnik e Cássia Eller. Eles têm o mesmo background e o mesmo objetivo: simplesmente, o de escrever canções - e a canção brasileira já é definitivamente o que é. Não há mais distâncias porque, descontadas as diferenças de gosto e de qualidade, não há mais direções".

Não consigo deixar de comentar que essa foi uma das maneiras mais polidas de dizer que uma geração inteira não cheira nem fede que eu já vi. Mammì chega quase a ser simpático. Ele também mistura o conceito de 'cânone' com o que parece uma sugestão de 'fim da História': depois de fechado o cânone, qualquer 'diferença substancial' deixaria de existir.

Dito isso, esse excerto reafirma o pressuposto da ansiedade a que me refiro no início: há um cânone e o destino do cânone preocupa a geração que viu o cânone se estabelecer.

Ele oferece também a ideia de DESCENTRAMENTO, que é diferente de perder centralidade.

3. A metáfora da "casca lisa e uniforme sobre a qual seria possível correr livremente em todas as direções, como num deserto", é a descrição exata para a rede de signos altamente densa da cultura contemporânea que de tantos centros possíveis já não admite qualquer centro. Estamos lidando com algo muito próximo do conceito de 'rizoma' que os teóricos da internet popularizaram.

O planeta chegou aos 7 bilhões de habitantes. Diante de tamanha vastidão, a distância entre as pessoas perde de fato o sentido, pois "descontadas as diferenças de gosto e de qualidade, não há mais direções".

Se ansiedades têm causas, essa pode ser uma delas: as gerações canônicas (temos hoje entre 55 e 80 anos) estão diante de um mundo em que a crítica de cultura se tornou praticamente obsoleta. E comparar, analisar, generalizar, categorizar, e tudo que diz respeito à crítica e à reflexão são procedimentos inseparáveis do ato de fruir música popular para quem cresceu 'naquele mundo'.

O acesso que a internet permite, a tudo que já se produziu em música em todos os séculos, implode os critérios de julgamento. Não tem cabimento gastar energia tentando definir o que é 'bom' e 'ruim' se não há razão para descartar o que quer que seja. 'Gostar' ou 'não gostar' passam a ser efetivamente questões pessoais. E se tudo que eu gosto está agora a meu alcance, o que eu não gosto pode ser silenciado com um clique e ainda haverá quase 7 bilhões de seres humanos que podem gostar do que eu não gosto. O 'bom' não disputa mais lugar com o 'ruim' e vice-versa. A Biblioteca de Alexandria caberia num pen-drive.

Em um campo, porém, o gosto puro e simples não é suficiente para justificar as escolhas. A Educação.

4. A Educação, diz o francês Bernard Charlot, "é o processo pelo qual o pequeno animal que é gerado por homens se torna ele mesmo humano, apropriando-se de uma parte do patrimônio humano".

O ser humano existe, continua Charlot, "igualmente na forma de objetos, das práticas, das obras, dos conceitos, das significações, das relações, dos valores, construídos coletivamente pelos próprios seres humanos ao longo de sua história, ou seja, na forma de um patrimônio".

"Ninguém pode se apropriar da totalidade do patrimônio humano. O ser humano se humaniza apropriando-se apenas de uma parte do patrimônio humano, o que o faz se tornar um ser humano de tal época, de tal sociedade e mesmo de tal classe social. O ensino não transmite 'o' patrimônio humano, ele transmite uma parte deste, em formas específicas".

(...) "Por isso mesmo, o professor é sempre contestável: por que ensina mais isso que aquilo? Para que serve isso? Para que serve a álgebra? Para que serve a História? E de um modo radical: para que serve a escola?"...

O professor é aquele que precisa estar preparado para justificar suas escolhas. Assim, ele tem, na quase totalidade do tempo, que encontrar e organizar critérios que sustentem o currículo. As "partes" do patrimônio a ser transmitido não podem ser aleatórias.

É nesse sentido que a gigantesca experiência cultural coletiva que se chama música popular brasileira tem tanto a contribuir com a Educação. A Educação, por sua vez, pode ser o campo privilegiado para a compreensão do que seja esse patrimônio.

Para nós, a música popular é o resultado de quase dois séculos de produção ininterrupta submetida a constante reflexão, plena de desdobramentos e conflitos. Um saber construído a milhares de mãos integrando produtores, receptores e intermediários e formando, como Antonio Candido descreveu, um sistema.

Várias gerações cresceram enquanto esse legado estava em construção. Nada mais natural que haja no ar a perplexidade diante de um mundo em transe, onde todos se percebem sob constante risco. Para garantir que o patrimônio se preserve e que gere novos frutos a prática da crítica, a que estamos tão familiarizados, é fundamental.