Especial

Maria Bethânia, acima do tempo

Por Daniel Brazil - 19/10/2009

Bethânia surgiu como um tornado, no redemoinho dos anos 60, passando por cima das idéias estabelecidas. Não era bonita, não era soprano, nem sequer afinadinha. Era forte e original. Cantando Noel, Caetano e João do Vale, pisando no palco com a segurança de quem sempre soube que ali era seu território de fato.

Cresceu junto com figuras solares, e nunca foi eclipsada. Atravessou movimentos como quem atravessa rios. No meio da torrente parece fazer parte dela, mas a linha que traçou para seu destino é ponte. Logo emerge, inteira e íntegra, incorporando todos os erros, acertos e belezas.

Doce bárbara, a alma de Bethânia invadiu todos os cantos brasileiros. Abraça Lupiscínio, sobe o morro carioca, explora o mistério dos igarapés amazônicos, pisa no chão seco da caatinga, ponteia a viola caipira paulista, explode num rock baiano de Raul, baila romântica ao som de Roberto Carlos. Canta Herivelto como poucas, Gonzaguinha como ninguém, deixa Vanzolini com raiva por rondar aquela esquina com tamanha precisão. Chico e Bethânia? Pororoca de maravilhas. O que é que a baiana tem?

Depois de atravessar os anos 90 como diva, cultuada como a “Roberto Carlos de saias”, Bethânia novamente surpreendeu. Saiu de uma grande gravadora, tirou o salto alto, secou as roupas da última travessia e caminhou descalça pelas praias de dentro, rumo ao Brasil interior, margeando o rio.

Seu disco Brasileirinho (Biscoito Fino, 2003) é um dos mais belos de todos os espaços-tempo. De Waldemar Henrique a Villa-Lobos, Bethânia alinhava suas paixões, deixando sua marca no resultado final. Marca que inclui a teatralidade, o canto de cabeça, a criação de uma dinâmica de palco que alia poesia e canção.

Bethânia é a maior declamadora do mundo, repare. Uma frase lida por ela em voz alta vira monumento. Há um momento no documentário sobre Vinicius (2005) em que ela coloca óculos, abre um livro e lê um soneto. Coitados dos atores e atrizes que passam a vida tentando interpretar daquela forma!

Sempre cercada por grandes músicos, não se contenta com o óbvio. A aliança com o músico e arranjador Jaime Alem, violeiro de Taubaté (SP), acrescentou novos timbres à musicalidade natural da filha de Santo Amaro da Purificação (BA).

Tem viola, tem. Tem atabaque, tem. Tem piano, tem. Tem violão? Ô! As gravações recentes de Bethânia enlaçam amorosamente a obra de Vinicius, o cancioneiro cubano, o samba de roda de Roberto Mendes, as toadas das noites de mãe-da-lua, as rodas de samba do Recôncavo, as dores ultramarinas. Seus últimos CDs, lançados em 2009, são mais do mesmo. Do mesmo universo. Do mesmo imensurável amor pela música brasileira. Moderninhos descartáveis vão torcer o nariz. Ah, quem dera ser Bethânia por uma década...

A alma brasileira tem um pé no passado, outro no futuro, e não sabe direito o que fazer no presente. Bethânia, alma de saci, tem o pé em todo lugar. Está acima do tempo, do espaço e do esforço estéril dos comentaristas. Como definir uma entidade?