Especial

João Gilberto: o Silêncio elevado à 80ª potência

Por Felipe Pamplona - 03/06/2011

Sempre recorrente quando o assunto é bossa nova, João Gilberto chega aos 80 anos alheio a estereótipos imputados pela cena musical brasileira e à responsabilidade de ser o maior precursor da sonoridade que seria equivocadamente rotulada como movimento.

Nietzsche afirmou que “sem a música, a vida seria um erro”. E sem a bossa nova, o que seria de nossa música? Excentricidades à parte, João Gilberto ao contrário da canção que o tornou célebre no mundo todo, deixará muitas saudades. O banquinho e o violão nunca foram tão solenes na música mundial como foram para este baiano vindo de Juazeiro que, durante a juventude, quando ainda era conhecido pelo apelido Joãozinho da Patu, sonhava em ser o novo Orlando Silva, ao disparar serenatas à janela de sua paixonite Ieda.

A timidez e o comportamento contido do arquiteto do movimento bossa-novístico, tornaram-se sinônimo de sofisticação perante plateias sedentas pela voz baixinha e o violão sincopado pelas flutuações harmônicas. Conforme publicado em nota, pela coluna de Ancelmo Góis, em O Globo, foi anunciada a despedida de Gilberto em uma turnê de homenagem aos seus 80 anos.

O pedido de silêncio, as paradas para afinar o instrumento, a temperatura do ar-condicionado do teatro, o longo intervalo entre discos e turnês, as partidas de pingue-pongue’ entre amigos e o fascínio por formigas mortas e buracos em toalhas de mesa são características simbólicas de um artista que sempre buscou exercitar o perfeccionismo à exaustão. É desnecessário nos atermos com tais detalhes, até porque seria um desrespeito ao público e à própria obra apresentar-se ‘meia-boca’. Longe de ser uma unanimidade, muitos só lembrar-se-ão deste lado folclórico. Haverá argumentos de que ele talvez não tenha sido um exímio compositor como os contemporâneos de sua geração foram – Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Johnny Alf, Ronaldo Bôscoli, ou, avançando no tempo, quem sabe até aquele que passaria a ser seu cunhado anos mais tarde – Chico Buarque. ‘Bim-Bom’ e ‘Ho-ba-la-lá’ provam o contrário, quando em 1957, impressionaram a um dos produtores da gravadora Odeon – Tom Jobim - e inicia o período de gestação de um movimento que traria uma nova proposta de linguagem aos sambas ‘quadrado-tradicional’, ‘canção’, tão presentes nas frequências radiofônicas daquela época, e principalmente, mudara para sempre o panorama musical no país.

O mundo rendeu-se ao gênio quando o tampo e a caixa de seu violão Di Giorgio, modelo Tarrega, ressoaram em uma apoteótica noite de novembro de 1962, no Carnegie Hall, em Nova York. Achou um absurdo ter de se submeter aos arranjos jazzísticos do saxofonista norte-americano Stan Getz – embora a Bossa Nova fosse essencialmente influenciada pelo jazz.

Procurou afastar-se do país entre meados e final da década de 60, logo após o casamento com Miúcha – seu segundo – e o nascimento de sua filha Isabel, ou, Bebel Gilberto, conhecida atualmente por uma carreira de bastante prestígio principalmente nos palcos do exterior. Estranho imaginar um aspirante a ‘Latin Lover’ que um dia tocara serenatas regadas a Francisco Alves, Dorival Caymmi e até a canção ‘Malagueña Salerosa’, fosse ficar exilado pelo México e pelos Estados Unidos.

Durante períodos intercalados com breves intervalos do refúgio, invadiu o apartamento dos Novos Baianos no bairro de Botafogo, no Rio – Paulinho Boca de Cantor, Baby então Consuelo, Pepeu Gomes, Moraes Moreira e Luiz Galvão – para arregimentar o conceito de uma banda de grande sucesso na música popular brasileira contemporânea. O talento de cada integrante foi amalgamado com o espírito de ‘guru’ engendrado por Gilberto. Até aquele momento, o grupo baiano possuía claramente o acento contracultural do ‘rock and roll’. O conterrâneo bossa-novista deu o pontapé inicial para a incursão instrumental na fonte de compositores anteriores inclusive a seu tempo – Assis Valente, Jacob do Bandolim, Waldir Azevedo. “Chegou a hora de essa gente bronzeada mostrar seu valor”, fez como suas as palavras do também baiano Valente. Chama a atenção o lado pluralista despertado em João Gilberto, apontando o caminho da soma de valores estéticos e texturas músicas de épocas tão distintas, ao contrário das manifestações de seus contemporâneos da Zona Sul carioca com a chegada do Tropicalismo, empregado pelos ‘Velhos Baianos’ (Caetano, Gil, Bethânia, Gal, Tom Zé, e os paulistanos ‘Os Mutantes – Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee).

Não surpreende caso seja constatado que o Chet Baker brasileiro tenha sido mais noticiado na grande imprensa por questões relacionadas às suas ações fora do palco do que propriamente dentro dele. Pouco importa. Mesmo diante de polêmicas surgidas a reboque de sua busca por novos compositores na década de 80, como, por exemplo, incluiu em seu repertório o megahit ‘Me Chama’, de Lobão, gravado ‘à la Chega de Saudade’. Avesso às rusgas ou a superexposição da mídia, não se envolveu no questionamento feito pelo roqueiro ao fato do verso original “Nem sempre se vê mágica no absurdo” ter sido extirpado da gravação, e muito menos procurou dar explicações à Imprensa quando gravou anúncio de propaganda de cerveja.

Nossa cultura perde uma verdadeira instituição de valor inestimável ao não preservar seu acervo adequadamente. Independente disso, o silêncio encantador do cancioneiro de João Gilberto permanecerá na memória musical ao balanço de um 78 r.p.m de ‘Canção do amor demais’. Incontestável perante a história da música brasileira, passa despercebido das críticas e fofocas exatamente da mesma maneira que pediu a Roberto Menescal, aos sussurros, em uma noite de 1957. “Você tem um violão aí? Podíamos sair e tocar alguma coisa?”