Especial

Gil na USP: 40 anos de um show histórico

Por Daniel Brazil - 07/06/2013


Em 1973 a ditadura brasileira se especializava em ações criminosas como sequestro, tortura e assassinato de quem ousasse se opor. Foi o que aconteceu com o Minhoca, jovem estudante de Geologia da USP, que desapareceu no dia 17 de março. Foi visto por outros presos nas dependências do Dops pela última vez, destruído pelos golpes e choques elétricos. Ainda teve tempo de gritar “meu nome é Alexandre Vanucchi Leme, estudo na USP, e só disse o meu nome”.


Seus colegas (um deles, Adriano Diogo, é hoje deputado estadual) se mobilizaram de forma inédita. Algo precisava ser feito, não era mais possível suportar tanta violência. Depois que foi anunciado o “suicídio” de Minhoca pelos órgãos oficiais, uma missa foi organizada na Catedral da Sé, com a participação do cardeal Paulo Evaristo Arns. Caravanas de estudantes se dirigiram para lá na noite de 30 de março (véspera do aniversário do golpe militar), mas a repressão policial também. Com a praça cercada, mais de 50 estudantes foram detidos. Durante a missa, o compositor Sérgio Ricardo cantou, de forma emocionada, a canção Calabouço, cuja letra se refere ao assassinato do secundarista Edson Luís, no Rio de Janeiro, em 1968.


Apesar de todo o simbolismo do ato, uma missa não era suficiente. Era preciso reorganizar o movimento estudantil e criar ações motivadoras dentro do campus, como forma de resistência. E surgiu a ideia de convidar Gilberto Gil para um show quase clandestino.


Por que Gil? Chegado a pouco do exílio londrino, Gil fazia shows pelo Brasil, e havia lançado no ano anterior o disco Expresso 2222. Naquela semana estava em São Paulo. Entre 11 e 13 de maio a gravadora Phonogram havia promovido uma espécie de mostra de seus artistas no Anhembi, e Gil havia sido vítima de mais uma violência do regime militar. Os censores presentes ao espetáculo cortaram o áudio dos microfones no momento em que ia apresentar uma canção feita em parceria com Chico Buarque: Cálice.  Uma comissão de estudantes foi conversar com o artista na casa de Tuti Moreno, onde estava hospedado. Entre eles, a jovem Laís Abramo, que havia sido vizinha de Gil na Bahia, nos anos 60. Para surpresa de muitos, ele topou.


26 de maio, sábado, 17:30 h. Num auditório da Poli (o famoso Biênio), com acústica precária e apinhada de estudantes, Gil chegou e avisou que só poderia ficar 30 minutos, pois tinha show agendado à noite. Pegou o violão, dedilhou um pouco, esperou a turma sentar e cantou Oriente. Ficou por mais de 3 horas. Tocou, cantou, falou muito, conversou com o público, discutiu com ele mesmo, apresentou velhas e novas canções. Até crença em disco voador surgiu no meio do papo.
Instado a cantar Cálice, se desculpou dizendo que não sabia de cor a letra, em boa parte escrita pelo Chico. Logo surgiram várias cópias (havia sido publicada num jornalzinho acadêmico), e um estudante segurou a folha de papel enquanto ele cantava. A canção foi bisada no final do extenso concerto, que teve de Domingo no Parque até Só Quero Um Xodó, passando por Back in Bahia. Gil ainda explicou porque achava canções como Procissão e Roda ultrapassadas, com uma visão errada de mundo.


Tudo isso foi gravado pelo Guido, estudante de Engenharia Elétrica e integrante do GTP, Grupo de Teatro da Poli. Um velho e bom gravador de rolo deu conta do recado. As fitas se transformaram num tesouro que ficou escondido pro alguns anos. Na década seguinte, cópias em cassete circularam por várias mãos, e eram ouvidas como se fossem sinais premonitórios do fim da ditadura.
Com a chegada da era digital, as fitas foram masterizadas e digitalizadas por Paulo Tatit. Nunca chegaram a ser negociadas, pois os direitos pertencem à Universal, dona do acervo da Phonogram. Ary Perez, da comissão organizadora do show, conta que Gil recebeu uma cópia e gostou, mas deixou claro que para ele o maior significado do evento era político, por todo o contexto envolvido.


Boa parte dessa história está contada com detalhes no livro Cale-se (Editora Girafa, 2003), escrito pelo jornalista Caio Tulio Costa. Outra parte está aqui pela primeira vez, por conta do depoimento de Ary Perez, um dos responsáveis pela distribuição do CD. O show pode ser baixado e ouvido aqui: http://alifanfarrao.blogspot.com.br/2012/02/gilberto-gil-ao-vivo-na-esco....