Especial

E a vida, o que é? Um palpite infeliz

Por Marcio Paschoal (*) - 09/11/2015

Dois grandes compositores da nossa melhor música popular, cada um em seu tempo e modo, são relembrados em dois CDs recém-lançados: “Com que roupa - Flora Almeida canta Noel Rosa” e “Gonzaguinha Presente – duetos”.

O carioca de Vila Isabel, Noel de Medeiros Rosa, teve educação esmerada, chegou a cursar medicina, mas largou tudo e enveredou pela música e poesia. O CD da cantora gaúcha Flora Almeida revisita seus maiores sucessos, em gravação caprichada, com direção musical de Leo Bracht. Curioso vir de Porto Alegre, tradicionalmente mais ligado ao rock nacional, esse disco de sambas com viés jazzístico, incluindo levadas de bossa-nova e blues.

No encarte, o escritor Luís Fernando Veríssimo destaca que Flora é uma ótima intérprete de jazz, e também se deixa envolver pelo clima nostálgico que permeia as composições de Noel, envoltas em figurinos tão diferentes e, em muitos momentos, ousados, que caracterizam a maior parte das faixas.

“Feitiço da Vila” tem piano acelerado e fraseados jazzísticos. A cuíca (Marcelinho da Cuíca) abre “Feitio de Oração” e a pegada de jazz é mantida. O clássico “Palpite infeliz” já tem mais samba e conta com os metais de Jorginho Trompete, Marcelo Ribeiro e Carlos Mallmann. Um tanto desnecessário o agudo no final. Flora se recupera a seguir com “Último desejo”, mais lento e bossa-nova, com arranjo de guitarra de Ademir Cândido e o correto piano de Luís Henrique New, numa das mais acertadas do disco. ”Conversa de botequim” não acrescenta novidades às já tantas gravações, exceção feita à parte em que Flora meio que recita e, malemolente, finaliza o recado de Noel. “As pastorinhas” recebe o melhor da voz de Flora com arranjo de cordas de Vagner Cunha.

A que mais me agradou é a faixa “Três apitos’ com guitarra de Alegre Corrêa. Simples e bonito justamente naquilo que é mais difícil: alguns vocalizes de Flora combinando com o acompanhamento da guitarra. Enfim, um disco que coroa um trabalho que Flora vem acalentando de cantar Noel, de acordo com informações no encarte, desde os anos 1980. Valeram o tempo de espera e o amadurecimento. O CD “Com que roupa” (aliás, a música que faltou no disco, uma das primeiras autorias e gravações de Noel) merece ser conferido por admiradores ou não de Noel. Sim, esses últimos existem, ruins e doentes da cabeça e do pé. Uma ótima oportunidade para rever opiniões. Aqui no Rio de Janeiro, batucando no cemitério do Caju, o velho mestre da Vila deve estar um pouco mais feliz.

Outro carioca de fino trato, Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, filho adotivo de Luiz Gonzaga e Odalea dos Santos, é relembrado num disco em formato de duetos, com a presença de lista eclética de nomes consagrados da nossa MPB. Tem Martinho da ViIa na ótima “Com a perna no mundo ...(diz lá pra Dina que eu volto/ que seu guri não fugiu/só quis saber como é /qual é/ perna no mundo , sumiu...) samba do melhor partido; Fagner em “Feliz”, com arranjo de Mauricio Barbosa; e dueto com Maria Rita no hino “Grito de alerta” ( aquele do nosso caso é uma porta entreaberta e eu busquei a palavra mais certa, veja se escuta meu grito de alerta), uma das melhores faixas do disco.

Gonzaguinha incomodava a repressão com suas letras críticas e ácidas. Com o começo da abertura política, na segunda metade da década de 1970, começou a compor canções de tom mais aprazível para o público da época, como “Começaria tudo outra vez”, aqui neste disco, dividindo os vocais com Lenine, uma tacada genial. Daquela fase também “Não dá mais pra segurar (explode coração)”, com a escolha da cantora Ana Carolina também acertada.

Ao todo são 14 faixas, algumas excelentes (falo da escolha do parceiro para o dueto e das mixagens), outras nem tanto. O fato é que com os recursos da moderna tecnologia, o CD foi possível e trouxe, com a voz original de Gonzaguinha, mesclada a novas gravações, passagens realmente muito boas. Completam a seleção, sem tanto brilho, “Recado” com Luiza Possi; “Um homem também chora”, com Zeca Baleiro substituindo o original com Fagner; “Lindo lago do amor”, com Gil; “Vamos à luta”, com Zeca Pagodinho; “Ponto de interrogação”, com Alcione; “O que é o que é”, com Alexandre Pires; e “Sangrando”, com Ivete Sangalo.

Uma boa surpresa é o dueto de “Espere por mim morena”, com a dupla sertaneja Victor e Leo. Para fechar, o filho Daniel Gonzaga e o pai Lua, num encontro em família em “A vida do viajante”. Difícil não se emocionar.

(*) escritor, autor da biografia de João do Vale