Especial

A dura vida de compositor

Por Daniel Brazil - 13/11/2009

Compositor, bico ou profissão? Essa dúvida passou pela cabeça de muitos gênios da nossa música popular. Compartilhada pelos pais, esposas, maridos e familiares, certamente. Fazer música é coisa de vagabundo?

Bom, às vezes também é. Mas viver só de música sempre deu uma trabalheira para os nossos heróis. Dorival Caymmi vendia barbante. Lupicínio era mecânico de automóveis. Assis Valente foi protético e Ataulfo, farmacêutico. Cartola foi servente de pedreiro, assim como João do Vale. Nelson Sargento, pintor de paredes. Evaldo Gouveia era feirante. Herivelto trabalhou na barbearia do irmão. Lamartine Babo começou como office-boy. Pedro Caetano vendia sapatos.

Sérgio Ricardo foi locutor de rádio, como seu xará Sérgio Sampaio. Wilson Batista, que se gabava de ser malandro profissional, trabalhou como acendedor de lampiões, e depois eletricista. Zé do Norte, autor de Maria Bonita, pegou no cabo da enxada, como tantos outros sertanejos. Orestes Barbosa foi jornalista, ofício de Antonio Maria e Ronaldo Bôscoli. Já Mano Décio da Viola vendia jornais...

Alguns completaram o curso superior, viraram doutores. Joubert de Carvalho (Tahí...) foi médico a vida toda. Guinga é dentista. Paulo Vanzolini, zoólogo. Aldir Blanc, psiquiatra. Elomar, arquiteto. Ivan Lins é engenheiro químico, João Bosco engenheiro metalúrgico. Zé Miguel Wisnick é professor de literatura, como seu colega semiótico Luiz Tatit.

Nem todos agüentaram os anos de faculdade. Noel desistiu do curso de medicina. Chico Buarque quase foi arquiteto, como Braguinha (daí o apelido de João de Barro, passarinho que constrói casas). Gil, quase administrador de empresas. Caetano, quase filósofo. Tom Jobim, na dúvida entre engenharia e arquitetura, ficou mesmo com a música, para felicidade geral da nação.

Taiguara desistiu do curso de Direito. Ary Barroso, que era radialista, demorou nove anos pra pegar o canudo de advogado. Virou colega de Humberto Teixeira, Mário Lago, Alceu Valença, Luiz Ayrão, Geraldo Vandré, Sueli Costa, Ney Lopes e Vinicius de Moraes (que também foi diplomata).

Aliás. o funcionalismo público foi a salvação para muitos compositores. João da Baiana era fiscal da Marinha. Batatinha trabalhava na Imprensa Oficial da Bahia, como tipógrafo. Candeia era policial, assim como Nelson Cavaquinho. Wilson Moreira foi carcereiro, antes mesmo de compor Senhora Liberdade. Geraldo Pereira foi motorista de caminhão de lixo. Dona Ivone Lara se aposentou como enfermeira.

A turma do choro também teve de cortar um dobrado para se manter. Garoto trabalhou no comércio, Waldir Azevedo foi empregado da Light. Jacob do Bandolim, escrivão de polícia até o fim da vida. Zé da Velha se aposentou como aeroviário. Altamiro Carrilho começou como farmacêutico, e o também flautista Carlos Poyares, adolescente, fugiu de casa pra trabalhar no circo...

Alguns levavam jeito para outras artes. Dolores Duran foi atriz de radionovela, colega do já citado Mario Lago. O genial letrista Luiz Peixoto (Na Batucada da Vida) era chargista dos bons, assim como Nássara (Ala-la-ô). Heitor dos Prazeres ganhou mais dinheiro como pintor do que como músico. (Aliás, é dele o quadro que ilustra este artigo).

Gente como Padeirinho, Tião Motorista ou Nelson Sargento carrega a profissão no nome pelo resto da vida. Um certo Martinho, também sargento, escapou do apelido adotando a Vila (Isabel) como sobrenome.

Mas teve gente que se meteu com música desde pequeno, e nunca fez outra coisa? Claro! Alguns nasceram em família de músicos, ensaiaram seus primeiros acordes no berço (nem sempre de ouro) e subiram no palco muito cedo. Luiz Gonzaga, Radamés Gnatalli, Tito Madi, Edu Lobo, Egberto Gismonti, Vitor Ramil e Paulinho da Viola (que mesmo assim trabalhou um tempo como bancário, obrigado pelo pai, o grande violonista César Faria, que nunca largou o emprego de oficial de Justiça).

E sobra a ala dos músicos-mesmo, liderada por Chiquinha Gonzaga, Joaquim Callado e Ernesto Nazareth. Nela estão os bambas Pixinguinha, Sinhô, Custódio Mesquita, J. Cascata, Waldemar Henrique, Vadico, Baden Powell, Sivuca, Hermeto Pascoal, Eduardo Gudin e Milton Nascimento (que até cogitou estudar Economia), entre outros. Gente que ralou o casco (nos palcos), fez calos nas mãos (estudando o instrumento) e prova que não faz muito sentido a pergunta que abre esse texto. Há compositores bons e ruins. Se viveram ou não de música, no fundo, é mero detalhe biográfico.