Especial

Dor temperada com ironia

Por Daniel Brazil - 13/01/2012

Cantar a dor com alegria. Ironizar a tragédia. Alguns povos do mundo aprenderam este caminho, este modo de ver a vida. Não é fácil, não é óbvio. Independe de poder econômico, grau de civilização, avanço tecnológico, domínio dos meios de comunicação. Uns conseguem, outros não.

Um dos grandes patrimônios culturais do Brasil é sua música popular. Rica, variada, surpreendente, bebeu de várias fontes – Europa, África, América indígena, América colonizada – e se ramificou em inúmeros ramos, flores, frutos. As intersecções criativas com outras culturas provocaram pororocas seminais, atos antropofágicos e construções inusitadas.

Na música, a mais democrática forma de arte brasileira (e do planeta), a característica de rir da desgraça surgiu nas festas de escravos do Brasil imperial. Há registro de vários versos que ironizam o chicote no lombo, o assédio vergonhoso, a fome e a privação. A explicação não é esotérica. Nas festas da senzala ou do quilombo não era possível haver apenas choramingos e lamentos. Há um momento coletivo em que todos querem dançar, folgar, vadiar. E já que a realidade era cruel, que tal transformar a dor em gozo? Ou melhor, em gozação?

Os primeiros escravos libertos foram os pais dos primeiros sambistas. E estes, vivendo na penúria e na dureza, aprenderam que a vida não é só lamento. “Batuque na cozinha, sinhá não quer” poderia ser algo choroso, mas não é. O aviso de “Pelo Telefone” (Sinhô, talvez), considerado um marco na história da música brasileira, acertou na mosca: “Deixa as mágoas para trás, meu rapaz!”

Mestres afamados (e outros pouco conhecidos) desenvolveram a dissimulada arte. Ataulfo cansou de cantar tragédias com pastoras sorridentes fazendo um corinho sapeca no fundo. Wilson Batista talvez seja o maior criador do gênero rir-da-desgraça. Desde o amor que não chega (E o 56 não veio...) até o samba-manifesto Ganha-se Pouco Mas É Divertido. Junto com Ataulfo, escreveu clássicos como Seu Oscar, que poderia ser um drama de tango argentino em mãos menos argutas, mas é comédia.

Coisas de cortar os cabelos e arrepiar o coração, como a tétrica letra de Mãe Solteira (Wilson Batista/Jorge de Castro) se transformam num irônico comentário musical, acrescentando uma dimensão semântica inusitada à tragédia. Imagine este “causo” contado/cantado por Lupicínio, Cartola ou Adelino Moreira. Pior: imagine se um breganejo ultrapassasse o próprio umbigo e resolvesse contar uma crônica como essa...

Mestres contemporâneos, como Chico Buarque, Caetano ou Gil, entenderam esta lição. Chico, mais teatral e dramático, sempre incorporando outros personagens, tem o humor como uma de suas armas preferidas (ou melhor, tinha. Anda meio sério demais...). Caetano e Gil, mais transparentes, falam de suas dores e perdas, ora melancólicos, ora sábios. Como não sorrir com a Queixa, de Caetano? Ajoelha, e não reza!

Outros mestres da ironia são cronistas, espectadores externos das pequenas desgraças da vida. Billy Blanco, Zé Keti, Aldir Blanc e mais uns poucos. Criadores que captaram o sentido da coisa desde a infância, pulando alegremente a morte da camélia (depois de dois suspiros).

A cantora e pesquisadora Cristina Buarque, fã de Wilson Batista, é uma rara intérprete dos sambas de humor negro, onde a morte, os crimes hediondos e a miséria mais grotesca ganha ares de comédia. Participante do disco que ilustra esse artigo (Cadáver Pega Fogo..., de 1983, com músicas de Fernando Pellon), gravou muita coisa de Wilson Batista e participou do espetáculo O Samba é Minha Nobreza, de 2002, excelente coletânea de sambas dirigida por Herminio Bello de Carvalho onde está bem presente o espírito de gozação dos dramas domésticos e sociais.

Autores da era dos festivais também sacaram a riqueza de duplo sentido que música e letra podem ter. Upa, Neguinho, de Edu Lobo e Guarnieri, se fosse escrita por um bluesman do Mississipi poderia ser um libelo contra o racismo e a pobreza. Elis Regina imortalizou a versão sorridente e saltitante do neguinho na estrada, upa pra lá e pra cá. De forma talvez inconsciente, retomou a tradição da mensagem social não-lamurienta, se diferenciando da forma utilizada por contemporâneos seus como Geraldo Vandré, Taiguara e quejandos.

A mesma Elis errou o tom, anos depois, quando regravou outro mestre da ironia, Adoniran Barbosa. Sua versão de Saudosa Maloca é chorosa, dramática no pior sentido. A canção se empobrece, se torna unidimensional, apenas tristonha. A brejeirice imortal dos Demônios da Garoa é soterrada pela obviedade da interpretação plana. Justo ela, perfeita quando canta uma canção realmente dramática como Atrás da Porta, onde parece acrescentar dimensões...

O genial Itamar Assumpção, mestre do duplo sentido, do trocadilho, do humor sutil (“um homem com uma dor é muito mais elegante”), também errou a mão quando regravou Ataulfo Alves. Talvez abalado pela notícia da doença que lhe tirou a vida, gravou um CD tristonho e tristinho. Algumas canções de extraordinária riqueza semântica se achataram, soam desossadas, anêmicas.

Os exemplos são muitos. Os citados são emblemáticos, mas podem ser multiplicados. Alguém que pega uma canção triste-alegre e transforma numa canção apenas triste (ou apenas alegre) é um diluidor. Não entendeu a riqueza da proposta musical. Assim como um compositor que só escreve besteiras alegres (ou asneiras tristes) o tempo todo precisa tomar umas lições com os mestres.

E não só com eles. Os bambas do partido-alto, os bregas autênticos, os forrozeiros, são considerados menores pelos historiadores da música brasileira. No entanto, muitos compreenderam a riqueza do duplo sentido emocional. Falar da desgraça sorrindo. E – mais difícil, talvez – falar da felicidade de modo reflexivo, desconfiado, com a compreensão da finitude das coisas nesse mundo.

Não entendeu? Então ouça. Um bom samba vale mais que qualquer discurso. Tá tudo aqui, na visão dos essenciais Manacéia, Paulinho da Viola e a Velha Guarda da Portela.