Especial

Cartola – Música para os Olhos

Por Daniel Brazil - 19/04/2007

Antes de mais nada, é preciso dizer que esse é um filme fundamental para quem gosta de música brasileira. Deveria ser exibido regularmente em escolas, clubes, morros, condomínios, em canais de televisão, em shows de rock, em acampamentos, em igrejas, em presídios. É a história de um brasileiro pobre, negro, nascido no morro, semi-analfabeto, que por um daqueles fenômenos que recusam explicação, tornou-se um dos maiores poetas populares do país. Para muitos, o maior.

O filme de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda demorou quase dez anos para ser feito. A pesquisa meticulosa superou o hercúleo desafio de enfrentar os problemas burocráticos de direitos autorais sobre sons e imagens. Quem já se aventurou na área sabe que não é tarefa para amadores.

O resultado é um apanhado primoroso das imagens existentes do grande compositor. Cenas raras, entrevistas, trechos de filmes, fotos, desenhos, tudo é mesclado com panorâmicas do Morro da Mangueira, das escolas de samba, da própria vida política e cultural do Brasil. A montagem estabelece um jogo de referências cruzadas cuja somatória é uma espécie de síntese da história do samba.

As entrevistas e depoimentos de sambistas notáveis vão colorindo o mosaico. É sempre um prazer ver e ouvir Ismael Silva, João da Baiana, Donga, Nélson Cavaquinho, Zé Kéti, Carlos Cachaça e outros mestres. Ou ouvir Cartola interpretado por vozes tão diferentes e tão brasileiras quanto as de Elza Soares, Francisco Alves, Nara Leão, Altemar Dutra, Elizeth Cardoso, Nelson Sargento e as pastoras da Mangueira, entre outros. Prazer maior só vê-lo e ouvi-lo interpretando as próprias obras.

Com esse material na mão, os diretores poderiam ter trilhado o caminho seguro do documentário didático, e certamente iria ficar bom. Mas eles arriscaram. Uma edição nervosa, que às vezes lembra um videoclipe. Inseriram seqüências ficcionais. Fizeram analogias, contrastes e aproximações inusitadas. Quem imaginaria ver cenas do exército nas ruas, durante o golpe militar, embaladas por um suave samba-canção de Cartola? Mas as imagens estão em movimento inverso, os soldados andam pra trás, e tudo parece fazer sentido no retrocesso que o país vivia daquele momento.

O episódio onde o jovem Cartola é apanhado por um marido traído, no morro da Magueira, é ilustrado por uma cena de chanchada, com Oscarito. Quando se fala de vender sambas, é Grande Otelo que personifica o sambista, em seqüência extraída de Rio Zona Norte. Um belo exemplo de como lidar com a representação real de uma época lidando também com o imaginário, a ficção produzida no período.

Nem sempre a invenção dá certo. Na seqüência de fotos do Zicartola, bar-restaurante que durou dois anos e virou referência cultural no Rio de Janeiro, o movimento errático de edição sobre as fotos mais atrapalha que informa. Feliz é a idéia de escurecer a tela durante os dolorosos anos em que Cartola some da Mangueira, nos anos 50, alcoólatra e sem destino. Vários espectadores olham para trás, perplexos, tentando notar algum problema no projetor. Há aí um achado que enriquece a percepção do filme, pois se ouvem vozes especulando sobre o destino do poeta.

É a primeira morte de Cartola, o malandro, meio vagabundo, bom de copo e violão, viúvo, fundador da Mangueira. Ele renasce nos anos 60 como o simpático senhor de cabelos brancos e óculos escuros, autor de sucessos nacionais como O Mundo É um Moinho ou As Rosas Não Falam.

Se da primeira vida de Cartola só restam algumas fotos desbotadas, da segunda surge uma profusão de imagens. Cartola como ator do filme Ganga Zumba, na comissão de frente da verde-e-rosa, em rodas de samba, em depoimentos na TV (graças a Fernando Faro e seu programa Ensaio, da TV Cultura, um tesouro da música brasileira), passeando pela Lapa, tocando com o velho pai ou cantando pra esposa, Dona Zica.

Embalados pelas belas composições, vemos o cidadão Angenor de Oliveira desfilar feliz, satisfeito pelo reconhecimento, ainda que tardio. Aquele sorriso afável (o produtor de seu primeiro disco, Pelão, revela que ele cantava melhor sem a dentadura), aquele jeito tranqüilo de se deixar filmar, andando pelas ruas ou conversando com os amigos, revelam um Cartola consciente de que, ainda em vida, tinha virado um mito.

Poucos homens no mundo devem ter sentido isso. E poucos documentários souberam tão bem captar esse sentimento. Cartola – Música para os Olhos é filme para rever várias vezes. E sair cantarolando alguns dos mais belos sambas de todos os tempos.