Especial

A apropriação política de uma canção

Por Daniel Brazil - 08/12/2017

A música, como elemento essencial e formador da cultura de todos os povos, sempre enfrentou o problema de ser acoplada a outras atividades humanas. As mais antigas referências são cantos tribais relacionados à guerra, às colheitas, aos deuses, às festividades, aos mortos. As canções de ninar e as de amor são, provavelmente, as primeiras formas musicais socialmente autônomas, que independem de igrejas, festas, disputas ou funerais para serem entoadas. Partem de um indivíduo e são dirigidas a apenas outro ser.


Ouvir música “pura”, sem conexão com outro contexto social, é uma invenção do Romantismo, que floresce a partir do século XVII. E a canção popular, em todo o Ocidente, vai se aproveitar disso e desenvolver as diversas formas que conhecemos hoje.
É claro que as letras continuam inserindo as canções em determinados contextos. Determinam se são de amor, de alegria, de raiva, etc. As canções de protesto, as canções políticas de resistência, os hinos revolucionários, enfim, geraram uma infinidade de Marselhesas em todo o mundo, herança da revolução burguesa.


Em todos os países que passaram por ditaduras existem canções simbólicas, perseguidas, censuradas, entoadas com lágrimas nos olhos por prisioneiros, exilados e perseguidos. O Brasil não é exceção. Depois de passar por duas ditaduras no século XX, acumulou uma respeitável coleção de canções de fundo político, muitas vezes não explícito.
Não é preciso citar obras de Chico Buarque, Taiguara, Vandré, Gilberto Gil, Edu Lobo e outros luminares para entender a questão. Autores populares, não incluídos no panteão, também foram censurados. O mais perturbador é saber que algumas canções foram depois apropriadas pelos próprios defensores da censura, deturpando o sentido original.


O caso mais emblemático é o de Geraldo Vandré, cuja canção Para Não Dizer Que Não Falei de Flores, mais conhecida como Caminhando, depois de quase vencer o Festival Internacional da Canção de 1968, censurada e banida, foi adotada pelos próprios militares e é hoje entoada em vários eventos fardados. Uma subversão oficial, sé é que isso existe, com ênfase no significado ambíguo de sub-versão.


Pois em pleno século XXI, quando supomos que esse tipo de manipulação não é mais cabível graças à revolução tecnológica da informática, novamente uma canção simbólica é expropriada indevidamente por autoridades envolvidas em um golpe antidemocrático.


A canção O Bêbado e a Equilibrista, composta por João Bosco & Aldir Blanc em 1978, foi um sucesso nacional na voz de Elis Regina. Com uma letra marcada por referências políticas (“choram Marias e Clarisses”, “a volta do irmão do Henfil”) virou uma espécie de hino dos exilados, num momento em que o Brasil clamava pela volta da democracia.
Estamos em dezembro de 2017. É moralmente repugnante a ideia de utilizar um verso desta canção emblemática para nomear uma ação policial, a invasão à UFMG, Universidade Federal de Minas Gerais, de forma despropositada e irresponsável. Invadir universidades, coisa que a ditadura militar de 1964-1983 tentou poucas vezes, é desrespeitar o espaço do saber, do conhecimento.


Felizmente os autores da canção estão vivos, ativos e posicionados. Nada como concluir com as palavras do próprio João Bosco:
“NOTA DE REPÚDIO À OPERAÇÃO "ESPERANÇA EQUILIBRISTA":
Recebi com indignação a notícia de que a Polícia Federal conduziu coercitivamente o reitor da Universidade Federal de Minas Gerais, Jaime Ramirez, entre outros professores dessa universidade. A ação faz parte da investigação da construção do Memorial da Anistia. Como vem se tornando regra no Brasil, além da coerção desnecessária (ao que consta, não houve pedido prévio, cuja desobediência justificasse a medida), consta ainda que os acusados e seus advogados foram impedidos de ter acesso ao próprio processo, e alguns deles nem sequer sabiam se eram levados como testemunha ou suspeitos. O conjunto dessas medidas fere os princípios elementares do devido processo legal. É uma violência à cidadania.
Isso seria motivo suficiente para minha indignação. Mas a operação da PF me toca de modo mais direto, pois foi batizada de “Esperança equilibrista”, em alusão à canção que Aldir Blanc e eu fizemos em honra a todos os que lutaram contra a ditadura brasileira. Essa canção foi e permanece sendo, na memória coletiva do país, um hino à liberdade e à luta pela retomada do processo democrático. Não autorizo, politicamente, o uso dessa canção por quem trai seu desejo fundamental.
Resta ainda um ponto. Há indícios que me levam a ver nessas medidas violentas um ato de ataque à universidade pública. Isso, num momento em que a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, estado onde moro, definha por conta de crimes cometidos por gestores públicos, e o ensino superior gratuito sofre ataques de grandes instituições (alinhadas a uma visão mais plutocrata do que democrática). Fica aqui portanto também a minha defesa veemente da universidade pública, espaço fundamental para a promoção de igualdades na sociedade brasileira. É essa a esperança equilibrista que tem que continuar.”
João Bosco
07/12/2017