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Vale da música

Por Vivi Fernandes de Lima* - 06/07/2010

(*Revista História, da Biblioteca Nacional)

Clementina de Jesus, Mano Elói, Rosinha de Valença e Dilermando Reis têm em comum o fato de serem artistas da música popular brasileira. Mas suas biografias mostram outra coincidência: todos nasceram em cidades do Vale do Paraíba.

O compositor e pesquisador Nei Lopes percebeu a influência da cidade natal de Clementina de Jesus (1901-1987) em seu repertório quando escreveu o livro “Rainha Quelé: Clementina de Jesus”, em parceria com a jornalista Lena Frias. “Clementina saiu de Valença para o Rio ainda bem pequena. Mas podemos ver, no repertório dela, a memória rural”, diz ele. Quanto à influência da região no samba carioca, ele não tem dúvidas: “A cultura musical de Valença e de toda a região do café foi fundamental para os antigos sambistas. A Serrinha (berço da escola de samba Império Serrano) e o Morro do Salgueiro, por exemplo, tinham moradores que vieram do Vale do Paraíba e das redondezas”.

O compositor Mano Elói (1888-1971) foi outro sambista que cresceu com a cultura do Vale do Paraíba. Nascido em Resende, interior fluminense, ele participou da criação de várias escolas de samba, como a Vai Como Pode (atual Portela) e Escola Prazer da Serrinha (hoje Império Serrano). Jongueiro e pai de santo, Mano Elói foi o primeiro a gravar pontos de macumba em dois discos da Odeon. Ele chegou a ser eleito como o “Primeiro Cidadão do Samba”, em concurso promovido pela União Geral das Escolas de Samba do Brasil.

Mário de Andrade, em pesquisa em São Luís do Paraitinga (SP) no início dos anos 1930, já dava pistas de como eram os sambas do Vale do Paraíba que depois foram transferidos para os centros urbanos do Rio de Janeiro e São Paulo. No livro “Aspectos da música brasileira”, ele descreve como as pessoas se reuniam num samba: “Enfileirados os instrumentistas, com o bumbo ao centro, todos se aglomeram em torno deste, no geral inclinados pra frente, como que escutando uma consulta feita em segredo”.

Além dessa ligação com o samba, a região tem como músicas típicas o calango, e o jongo. Nascido e criado em Volta Redonda, o compositor e bandolinista Carlos Henrique Machado Freitas chegou a lançar o estudo “Vale dos Tambores” (2005), em livro e CDs. Nele, o artista apresenta um panorama da produção musical do Vale, fortemente influenciada pela população negra. “A vinda dos negros da região Nordeste para o Vale no século XIX, ampliou a musicalidade desta região”, diz Freitas. Segundo ele, o violão de Dilermando Reis (1916-1977), tinha um “timbre tipicamente rural”. O motivo possivelmente está na sua origem: ele nasceu em Guaratinguetá, cidade paulista do Vale.

A ancestralidade de artistas renomados da música brasileira confirma a forte ligação com o Vale do Paraíba. Freitas faz questão de chamar a atenção para as influências de Baden Powell (1937-2000): “Seu avô era maestro de banda de escravos”. A banda a que o músico se refere era uma das dezenas que eram mantidas pelos barões do café. Segundo a historiadora Aressa Rios, a iniciativa era motivada por uma questão de status. “Esses conjuntos davam mais notoriedade aos senhores, assim como o número de escravos e as capelas de suas propriedades”, diz Aressa.

As bandas se apresentavam em coretos e eram normalmente regidas por maestros estrangeiros. Os negros aprendiam a tocar instrumentos de sopro, como trombone e trompete. O repertório era europeu. “Tocava-se Rossini, Verdi... Mas apesar do repertório, os escravos conseguiam dar uma identidade negra na forma de execução”, diz Freitas. Essa combinação de elementos europeus e africanos na banda é o que aproxima a música das bandas de escravos do choro, que foi popularizado no Rio de Janeiro pelo compositor e flautista Joaquim Calado (1848-1880) na segunda metade do século XIX. Coincidência? Aressa Rios dá uma pista: “Na segunda metade do século XIX houve uma migração muito grande do Vale do Paraíba para o Rio de Janeiro”.

Foto: Congadeiros do Vale do Paraíba em 1865.