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Um quintal de fina estampa

Por Por Marcio Paschoal (*) - 14/07/2014

Maria Bethânia tem gravado na memória seu tempo de recordações de árvores e folhas, a infância no espaço mágico dos quintais de nossas melhores vivências. Impregnado com esse espírito, meio nostálgico meio interiorano, a cantora nos presenteia com seu novo Cd “Meus Quintais’ (Biscoito Fino).
Ao longo das 13 faixas, podemos admirar a artista em pleno fulgor, intimista e ao mesmo tempo externando a arte mais singela.
O álbum começa com um presente ao bom gosto na letra de Paulo César Pinheiro, emoldurada pela melodia de Dori Caymmi.
A seguir, composição do paraibano Chico César com belo arranjo e guitarra portuguesa de João Gaspar, tão elegante quanto a lua ensejada na canção xavante.
Paulo Dafilim e Roque Ferreira assinam a ótima “Casa de Caboclo”, feita de palha, reboco e fino trato. O violão de Maurício Carrilho e o acordeom de Toninho Ferragutti acompanham Bethânia com delicadeza. (...flor mestiça que não tem receio em ser brasiliana quando aflora/ bendito aquele que semeia / verdes a mão cheia e diz à flor: floreia...).
A velha “Lua Bonita”, de Zé Martins e Zé do Norte, traz o realismo mágico caipira na voz cristalina da cantora: (...quem te fala é meu amor/ deixa São Jorge no seu jubaio amuntado/ e vem cá para o meu lado/ pra gente viver sem dor...).
Bebendo na fonte de “Estrela Miúda (João do Vale), “alumiando” tudo ao redor, “Candeeiro Velho” espalha luz na melodia de Roque, agora com PC Pinheiro e Luciana Rabelo no cavaquinho. O mesmo Roque Ferreira assina “Imbelezô eu/Vento de lá” (...foi o vento de lá/ foi de lá que chegou/ foi o vento de Iansã/ dominador que dormia nos braços da manhã/ e despertou...). Clara Nunes cairia bem no dueto, ou Clementina, ou Rita Ribeiro. Embeleza pura.

O álbum, primeira gravação de Bethânia após a morte de Dona Canô, no fim de 2012, recebe a canção pungente. “Mãe Maria” (Custódio Mesquita e Davi Nasser) transparecendo uma espécie de homenagem.
Uma das melhores faixas, “Uma Iara”, atrelada a texto de Clarice Lispector, editada por Fauzi Arap e Bethânia (última parceria de ambos, antes da morte de Fauzi), tem melodia de Adriana Calcanhoto que surpreende. Outro banho de João Gaspar no dobro (slide), guitarra que mimetiza a ondulação das águas. Arranjo certeiro.
Recolhida por Paulo Vanzolini, a moda da Onça, representa o folclore caboclo, enquanto “Povos do Brasil” (Leandro Fregonesi) exalta a raça indígena e sua sina.
Sob encomenda da cantora, Chico César compôs “Arco da velha índia” com referências claras à afinação da intérprete (...o arco em forma de boca sustenta a oca e a taba, roça o fim, mas não acaba, e finda sempre afinado...). Com arranjos de Bethânia e Jorge Helder e um time de músicos de qualidade, o disco segue homogêneo e festejando a natureza, os segredos, o profano e o religioso em cada quintal de todos nós. Paul McCartney havia revisitado seus quintais lá para as bandas de Liverpool, com o caos e a criação nos seus backyards. Life was very short e Lennon fez um pouco de falta. Imagine.
Seguimos com nossos quintais tupiniquins. Incenso, ouro e mirra para o Santo filho de Maria na folia de reis, e desembocamos em “Dindi” (Jobim e Aloysio de Oliveira) com Wagner Tiso no arranjo de piano, Jessé Sadoc no flugel horn, Pantico Rocha na percussão e Helder no baixo, fechando com chave máxima.
Um disco em que reinam o bonito e o simples de mãos dadas. Pode-se, ao inicial escutar, passar despercebida aos menos atentos, mas é a marca neste trabalho. Convém cautela, a voz de Maria Bethânia, como um arco de velha índia, lança encanto e singeleza, e sorte de quem se deixa envolver. Como uma sereia, iara preconizada por Clarice: à medida que ela canta, mais atraídos ficam os moços...
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(*) Marcio Paschoal é escritor e autor da biografia de João do Vale “Pisa na fulô mas não maltrata o Carcará”.