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Quem Foi Que Inventou o Brasil?, volume 3

Por Daniel Brazil - 05/09/2015

Comentamos recentemente aqui na Revista Música Brasileira (http://www.revistamusicabrasileira.com.br/especial/historia-da-republica...) os dois primeiros volumes da extraordinária obra de Franklin Martins, Quem foi que Inventou o Brasil? O terceiro volume, lançado em agosto de 2015, completa de forma magistral a pesquisa sobre as relações entre a música e a situação social e política do país.

O período abrangido agora é o que vai de 1985 a 2002, e compila 329 canções, de todos os gêneros. Os anos pós-ditadura compõem o cenário pesquisado pelo autor, que destaca os temas redemocratização e inflação como determinantes nos governos Sarney e Collor. É notável nesse período a emergência de novos gêneros, como o punk rock, o reggae, o mangue beat e o rap, que denunciam com vigor a violência policial, a discriminação e a corrupção dos políticos.

Franklin Martins interrompeu a pesquisa em 2002 para trabalhar em Brasília, como ministro-chefe da Comunicação Social de Lula. Ao deixar o governo, partiu para a organização do formidável material que havia compilado por dezoito anos.

Como nos volumes anteriores, o livro pode ser lido e ouvido, pois a quase totalidade das canções está disponível no endereço www.quemfoiqueinventouobrasil.com. É sintomático que quase desapareçam as marchinhas bem-humoradas de outros carnavais. As sátiras ganham tintas mais pesadas, e o grito da periferia explode com mais força, revelando um outro país, menos cordial e menos disposto a aceitar a desigualdade social.

Franklin Martins promove uma saudável mistura de gêneros, colocando lado a lado autores tão díspares como Bezerra da Silva e Mano Brown, Cazuza e Juca Chaves, Aldir Blanc e Chico Science. Em comum, a crítica social, ora cantada com tons de ironia, ora extravasada com rancor. Não faltam medalhões como Caetano, Gil, Tom Zé, Paulo César Pinheiro ou Milton Nascimento, ao lado de autores menos famosos da música sertaneja, do forró nordestino ou das toadas camponesas do MST.

Musicalmente, é visível a fragmentação estética da música brasileira do período. O país ressurge da ditadura esfacelado, não há mais unanimidades musicais como nas décadas anteriores. A influência de gêneros estrangeiros como o rock e o rap é alavancada pelos meios de comunicação. Surge a MTV, canalizando os anseios musicais de parte da juventude. O “tempo da delicadeza” parece terminado na MPB. Até o criador desta expressão, Chico Buarque, quase não aparece na pesquisa. A padronização da música sertaneja e do pagode esvaziam seus conteúdos, cada vez mais limitados a narrar aventuras e desventuras amorosas.

Embora a pesquise termine em 2002, tem uma atualidade espantosa. A maioria dos nomes continua presente, atuando de forma mais ou menos constante. Há algumas surpresas, como a cantora gospel Aline Barros reclamando do apagão no governo FHC ou como os inusitados versos da banda juvenil Dominó em Tô p da vida (com direito a citação de Ary Barroso):

Tô p da vida
Tão pondo fogo no planeta
E quem não tá vira careta tá-tá
A fina flor do preconceito
De cor de raça de sujeito
Isso tem jeito, isso tem jeito.
We are the word lá nas paradas
E gerações desperdiçadas
Em tantas lutas sem sentido
Feche as cortinas do passado
Mundo grilado, dolorido
Que se conforma.
Tô p da vida
Lances, jogadas ensaiadas,
Nas mesas das Nações Unidas
Azucrinando nossas vidas
Jogo de dados combinados
Dados marcados.(...)


Canções como esta, que passariam despercebidas para muito pesquisador renomado, foram detectadas pelo ouvido atento de Franklin Martins e sua equipe de colaboradores. E é uma delícia ver repentistas nordestinos, duplas caipiras e bandas gaúchas da fronteira ombreados com figurões do pop, do rock e da MPB, guerrilheiros punks, ativistas do rap e do reggae, funkeiros, cantores de axé, criadores de jingles de campanha, velhos e novos sambistas.

Se você se surpreende hoje com os versos irados de autores como Criolo ou Emicida, a leitura de Quem Foi Que Inventou o Brasil? vai perceber que eles são frutos naturais de uma árvores que tem raízes plantadas lá atrás, como bem demonstra Franklin Martins nessa obra que conquistou de imediato um lugar definitivo na historiografia da música brasileira.