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Pra que gravar um CD?

Por Daniel Brazil - 29/06/2010

O início do século XXI consagra a globalização da informática e a era da difusão musical pela internet. Canais como blogs, YouTube, Vimeo e MySpace se abrem para que autores e intérpretes divulguem seu próprio trabalho, cada vez mais independentes de gravadoras, distribuidoras e lojas de discos.

Por outro lado, as ferramentas digitais de gravação e edição ficaram mais acessíveis. Hoje é possível utilizar programas com software livre e gravar um CD autoral na sua casa, colocando na rede para consumo imediato ou vendendo de mão em mão.

A indústria fonográfica está em crise, e o próprio formato CD pode ser aposentado em alguns anos. Fizemos a alguns artistas novos, independentes, de vários gêneros e estilos, a pergunta crucial:

– Pra que serve gravar um CD hoje em dia? Ainda é um passo indispensável na carreira de um artista?

Para o paulista Beto Furquim, com um disco lançado em 2009 (Muito Prazer), “o CD tem mais o papel de um cartão de visitas”, mesma expressão utilizada pelo carioca Carlos Mauro, vocalista do Tio Samba, que está no segundo CD, É Batata. Para ele, ainda é insubstituível no agenciamento de shows, e na “conquista de espaço na mídia impressa e eletrônica”.

Evandro Camperom, também estreante em CD solo (Algazarra, 2009), lembra que CD “é um retrato do momento de um artista.” Ou seja, o pequeno objeto ainda tem uma função organizativa e histórica na carreira de músico. Carlos Mauro destaca que o lançamento de um CD é um fato midiático, um “gancho jornalístico”, diferente de colocar uma música na rede para download. Todos concordam que um CD cria uma relação pessoal com o comprador, com autógrafos e dedicatórias na saída dos shows.

A cantora Lia Cordoni (Sambafusão, 2010) aponta que, mesmo com um CD no circuito, furar o bloqueio da mídia não é fácil. Ainda mais quando é de canções inéditas, como é o seu caso. E aí cabe outra discussão, que é o papel que a mídia (não) cumpre na divulgação de novos valores. A crítica jornalística musical parece ter como foco noticiar quem já é notícia, apostando na preguiça mental dos leitores.

Na música instrumental, tradicionalmente com pouquíssimo espaço na mídia, não é diferente. O músico e compositor Alessandro Penezzi também valoriza o objeto-CD, lembrando ainda que “é possível fazer uma pequena tiragem, de 200 cópias, por exemplo, o que era inviável anos atrás”. A questão econômica pesa: a redução dos custos torna o negócio interessante. “Já vi artistas de renome vendendo seus CDs a 5 reais nos shows”, afirma Penezzi.

O curioso é que o início da era fonográfica foi marcado pelo lançamento de singles, de canções avulsas, exatamente para onde caminha hoje a produção digital. Intérpretes, compositores, orquestras, pequenos grupos, todos lançavam vários discos 78 rpm por ano, isolados, sem essa noção de conjunto que hoje (ainda) predomina. Os primeiros LPs (long play), na década de 1950, nada mais eram que coletâneas dos sucessos das velhas bolachas.

O incremento da música de consumo, com o estouro do rock’n roll e da música pop em escala mundial, no final dos anos 50, não eliminou o lançamento de canções avulsas. Inúmeros sucessos dos Beatles, por exemplo, foram lançados primeiro em versão compacta (disquinho de 7 polegadas, com duas canções). Posteriormente eram compilados em um LP, que chegava às lojas com várias músicas já conhecidas. Não existia ainda a idéia de um conjunto interligado de canções.

É em meados dos anos 60 que esse novo produto amadurece, com o surgimento dos álbuns conceituais, que contavam ou sugeriam uma história, um enredo ou um foco temático. O impacto foi tão forte que até hoje é difícil se desvencilhar dessa idéia e pensar em canções isoladas, como um Noel Rosa, um Frank Sinatra ou uma Carmen Miranda.

Como diz Furquim, “espera-se que as canções (de um CD) tenham minimamente um fio condutor e uma ordem pensada. E que essa coerência se expresse de alguma forma na capa e no projeto gráfico”. Para Carlos Mauro, o CD é um “item de colecionador”. O CD É Batata, uma coleção de releituras das canções de Carmen Miranda, da década de 30, forma uma “unidade conceitual”. E ele teoriza:

– O ser humano não é só um consumidor, é um colecionador. As coleções alimentam a memória afetiva das pessoas, são e sempre foram muito importantes para que o indivíduo se afirme como pertencente a um determinado universo cultural.

Chegamos a uma construção cultural bastante sofisticada, portanto. As mesmas canções que, quando foram gravadas por Carmen, eram avulsas, passam a ser ouvidas em conjunto, como uma suíte, pelo Tio Samba. Um pensamento bem contemporâneo, e ao mesmo tempo, conflitante com a multiplicidade da era digital.

Mas todo este pessoal com quem conversei (por e-mail...) ainda cresceu sob a influência dos LPs e CDs, das coletâneas e songbooks. Vamos ver se a molecada que hoje tem de 10 a 15 anos de idade e começa a baixar suas músicas na internet, colocando tudo misturado nos Ipods, vai produzir música dessa maneira. É bem provável que voltem a pensar música como os ídolos da Era de Ouro da canção: peças autônomas, feitas para serem cantadas e ouvidas sem ordem definida, sem relação com capas, embalagens ou fotografias (se é pra pensar em imagem, provavelmente serão videoclipes...). De vez em quando, colocarão faixas num CD (ou outro suporte), apenas para registro.

E se forem belas as canções, que importa?