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Português é o melhor idioma para a música?

Por Daniel Brazil - 31/01/2014

O domínio da canção de língua inglesa em todos os cantos do mundo, impulsionado pelo poder econômico e midiático dos EUA, faz muita gente pensar que a econômica sintaxe anglo-saxônica é favorável ao formato canção. Mas será mesmo?
Há línguas que soam mais ou menos ásperas, guturais, flexíveis, duras ou melodiosas. A canção alemã, por exemplo, nunca emplacou fora de suas fronteiras. A francesa teve um período de popularidade, mas foi soterrada pelo rock britânico a partir dos anos 60. A italiana, muitas vezes excessiva e melodramática, idem. E a canção brasileira (leia-se bossa nova) sempre foi considera elegante e elitizada, não se constituindo um sucesso popular em países europeus (Na América do Sul é diferente, até pelo “poder econômico e midiático” regional exercido pelo Brasil). Já o samba, mais empolgante, é visto geralmente como trilha sonora de carnaval, algo folclórico e barulhento.
Ocasionalmente, alguns gêneros caem na moda, e fazem a festa no chamado Primeiro Mundo. Já foi a lambada, agora é o forró. Um fã de música brasileira, Mose Hayward, levantou uma interessante teoria em um artigo que está causando certo debate na internet. Com o título “Porque o Português é o Melhor Idioma Para a Música”, o autor elenca uma série de elementos que reforçam a sua tese. Detalhe: ele é americano, estudou em Barcelona, conhece o Brasil e fala várias línguas, inclusive a nossa.
Para Hayward, a língua portuguesa tem uma quantidade enorme de sons vocálicos, que a deixam mais fluida e melodiosa. O fato de muitas palavras terminarem com vogais faz com que o(a) cantor(a) fique mais à vontade, podendo flexionar ou modular a emissão de voz, alongando o som ad libitum. Para esse efeito também colaboram os ditongos e tritongos, claro.
A quantidade limitada de consoantes também ajuda. Citando a cantora francesa (de choro e samba) Cléa Thomasset, ele detecta que usamos as consoantes de forma percussiva, marcando o ritmo de forma mais expressiva. Vários sambas sincopados seriam exemplos perfeitos, mas ele destaca Elis Regina cantando Nega do Cabelo Duro (Ary Barroso) como corolário da tese. No verso “qual é o pente que te penteia” as consoantes tamborilam como um tamborim, cabendo a cada intérprete percutir a língua nos dentes com a intensidade que achar conveniente.
Claro que o “ão” anasalado, com sua quase exclusiva sonoridade portuguesa, não poderia faltar na história. Tente fazer um gringo cantar “João Valentão é brigão, pra dar bofetão, não presta atenção...” e você vai perceber a dificuldade da coisa pra quem não cresceu familiarizado com este som. O vocábulo “saudade” também contribui para a diferenciação, porque embora exista sentimento semelhante em outras línguas, em nenhuma é tão cultuado e cantado. Para Hayward, “a língua portuguesa tem um vocabulário e uma atitude construída para celebrar essa ideia de saudade mais do que qualquer outra.”
Embora não seja um especialista da área, Mose Hayward arrisca pisar no terreno da linguística. Para ele, o português não é uma língua tonal, ou seja, “as variações de tom não geram mudança de significado nas palavras”. Isso deixa o compositor mais livre, certo de que mudanças de entonação não alterarão o significado da letra.
Será? Podemos encontra vários exemplos de palavras usadas em tom de ironia, na música brasileira. Noel Rosa já percebia isso, no início do século XX. Tente imaginar um Vicente Celestino, sério e compenetrado, cantando “baleiro, jornaleiro, motorneiro, condutor e passageiro, prestamista e vigarista, e o bonde que parece uma carroça, coisa nossa, muito nossa”. A intenção explícita de Noel é jocosa, ao mesmo tempo em que faz uma crítica ao ufanismo oco. Até “passageiro”, a descrição pode ser realista e até afetiva. A partir de prestamista, a mudança de tom é total. É curioso que muitos intérpretes não fazem essa diferenciação, cantando tudo do mesmo jeito. Desta forma, predomina o tom gaiato do samba, e é provável que o autor tenha desejado isso mesmo.
Hayward curte a palavra gostosa/gostoso. Para ele, esta é inequívoca, nunca é usada ironicamente na canção luso-brasileira. Podemos lhe atribuir vários significados, mas é sempre algo bom, desejável, desfrutável, saboroso, bonito ou sensual. Isso também é positivo na hora de construir as canções, de explicitar sentimentos. Quando falamos numa “bela bagunça”, isso pode ser dito (ou cantado) de duas formas: uma boa bagunça ou uma bagunça terrível, horrorosa, como o quarto de teu filho. Mas quando pensamos em “bagunça gostosa”, é impossível detectar um traço negativo. Já havia pensado nisso?
O autor conclui atribuindo certa responsabilidade ao contexto geográfico da língua portuguesa, com suas ramificações em três continentes (Europa, África e América do Sul), que se influenciam mutuamente. Tese recorrente, mas discutível. Afinal, o inglês é falado em praticamente todos os continentes, mas não se torna mais permeável por conta disso. Por outro lado, a contribuição da cultura negra é visível, tanto aqui quanto nos EUA. Talvez seja por isso que nas work songs dos negros nos algodoais do Mississipi as consoantes eram frequentemente engolidas, tornando as letras mais maleáveis...
Enfim, o artigo provoca boas reflexões e desdobramentos. Quem quiser ler o original, em inglês, está aqui (http://tipsypilgrim.com/blog/why-portuguese-is-the-best-language-for-mus...). Há tradução em português, mas feito com software gringo, o que sempre provoca alguma bagunça, sem nada de gostosa. Vale a pena a leitura!