Artigos

A poesia do morro: da utopia à bala perdida

Por Julio Cesar de Barros - 14/09/2010

(veja.com/Blog Passarela)

O morro, esse acidente geográfico do qual o Rio de Janeiro é pródigo, foi reduto dos negros fugidos da senzala e de negros libertos com a Lei Áurea. Recebeu também gente chegada do Recôncavo, provavelmente fugitivos da perseguição religiosa aos cultos africanos ou apenas atraídos pelas oportunidades oferecidas pela Capital. Mas o morro inchou de verdade quando para lá se mudaram as populações que viviam nas moradias precárias da região central e portuária da cidade. Essas famílias foram jogadas ao relento para abrir caminho às reformas urbanas motivadas por poblemas sanitários e viários que a cidade enfrentou no final do século XIX e início do século XX. 

Em 1875, foi criada a Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro, que planejou as mudanças na região. Já no início do século XX, o prefeito Pereira Passos retomou as obras, dragou o cais e drenou a região do mangue criando novas vias, inaugurou o prolongamento da Rua do Sacramento, abriu as avenidas Central (atual Rio Branco), Beira-Mar (onde hoje é o Aterro do Flamengo) e Francisco Bicalho. Moradias da Gamboa e Saúde habitadas pelo pessoal que trabalhava na estiva, pequenos artesãos e biscateiros que circulavam pelo centro do Rio, foram derrubadas e essa população transferida para a Cidade Nova e morros próximos ao centro, rumo à Zona Norte e aos subúrbios. Esses redutos passaram a ser chamados de favela, termo que, acredita-se, tem sua origem no Arraial de Canudos, no sertão da Bahia, onde existia uma colina com esse nome. Oriunda do faveleiro, nome de uma planta comum no sertão do Nordeste, a palavra teria sido trazida para o sudeste pelos fugitivos da repressão ao movimento liderado por Antônio Conselheiro. Ao longo do século XX, favela e morro tornaram-se sinônimos. E, com um nome ou outro, tem sido presença constante nas letras da MPB em geral e do samba em particular. Às vezes, como lugar de belezas incomparáveis, reduto de bambas, mas não raro, e cada vez mais frequentemente, como palco de injustiças, violência e pobreza. 

Os compositores passaram o século cantando suas belezas e lamentando suas carências, até que a troca de chumbo entre hordas de traficantes e entre estes e a polícia gerou uma onda de violência que matou com um choque de realidade o sonho paradisíaco. A precariedade extrema, que durou até recentemente, foi minorada com intervenções sucessivas, embora insuficientes, do poder público. Mas a situação econômica da população do morro evoluiu dos anos 60 para cá e o local passou a contar com uma parcela de integrantes da classe média bastante significativa. Ao longo do processo, o sambista acendeu uma vela para Deus e outra para o Diabo, ora exaltando, ora lamentando o viver lá no alto. Mesmo os compositores do asfalto cantaram essa dualidade. No clássico Favela, o processo de suburbanização precária que originou esses aglomerados foi muito bem descrito por Padeirinho e Jorge Pessanha, e na canção Ave Maria no Morro (Herivelto Martins), o lugar é descrito como um cenário entre a penúria material e o idílico:

Favela
Numa vasta extensão
Onde não há plantação
Nem ninguém morando lá
Cada um pobre que passa por ali
Só pensa em construir seu lar
E quando o primeiro começa
Os outros depressa
Procuram marcar
Seu pedacinho de terra pra morar
E assim a região
Sofre modificação
Fica sendo chamada
De a nova aquarela
É aí que o lugar
Então passa a se chamar favela…

Ave Maria no Morro
Barracão
De zinco, sem telhado
Sem pintura, lá no morro
Barracão é bangalô
Lá não existe
Felicidade de arranha-céu
Pois quem mora lá no morro
Já vive pertinho do céu
Tem alvorada
Tem passarada
Alvorecer
Sinfonia de pardais
Anunciando o anoitecer

Sinval Silva e Nelson Trigueiro compuseram em 1944 Crioulo Sambista, música na qual se percebe um certo conformisto diante da situação precária da moradia, que é compensada pela vida dupla de seu morador - trabalho subalterno no asfalto, artista na colina: 

Quase todo crioulo do morro é sambista
Toda mulata bonita é artista
Desempenha diversos papéis sozinha
À noite, ela samba no morro
De dia ela enfrenta a cozinha
Trata bem o sinhô branco
Bem melhor a sinhazinha
À noite traz um jogo de marmita
Com arroz de forno e galinha
O crioulo espera sempre
Lá no morro a rainha
Ela não dá importância
Ao zum zum zum das Candinhas

Em Cinderela do Morro, Dewett Cardoso reafirma essa dicotomia. A pobreza material não esconde o valor de sua gente: 

Cinderela no morro
É negra lavadeira, sim senhor
Não tem sapato pra perder na escadaria
Mas tem samba pra cantar pro seu amor
E quando os tamborins repicam no terreiro
A negra vira princesa
Do carnaval brasileiro
 
Luiz Antônio e Oldemar Magalhães exaltaram o lado triste do lugar em Barracão de Zinco (1953): 

Vai barracão
Pendurado no morro
E pedindo socorro
À cidade a seus pés
Vai barracão
Tua voz eu escuto
Não te esqueço um minuto
Porque sei que tu és
Barracão de zinco
Tradição do meu país
Barracão de zinco
Pobre és tão infeliz

Quando a Escola de Samba
Vem descendo pelo morro
Desce junto com ela
A poesia da favela

Em Alvorada (Cartola, Carlos Cachaça e Herminio Bello de Carvalho, 1968), a poesia tinge o feio de bonito: 

Alvorada
Lá no morro, que beleza
Ninguém chora, não há tristeza
Ninguém sente dissabor
O sol colorindo
É tão lindo, é tão lindo
E a natureza sorrindo
Tingindo, tingindo

gente do morro também respira poesia em O Morro é Assim (Carlos Magno, 1969): 

O morro é um punhado de beleza
Onde o pobre tem defesa
Samba e fantasia
Lá em cima tem um clima diferente
Quem convive com a gente
Só respira poesia

O morro é um lugar especial, onde há privação, mas também um modo diferente de se ver a vida. E não se questiona a originalidade de seus habitantes, como se nota em Linguagem do Morro (Padeirinho e Ferreira dos Santos, 1961): 

Tudo lá no morro é diferente
Daquela gente não se pode duvidar
Começando pelo samba quente
Que até um inocente sabe o que é sambar
Outro fato muito importante
E também interessante
É a linguagem de lá
Baile lá no morro é fandango
Nome de carro é carango
Discussão é bafafá
Briga de uns e outros
Dizem que é burburim
Velório no morro é gurufim

Em O Morro Não Tem Vez (Tom e Vinícius, 1963), que canta a esperança, o poeta ameaça retaliar a cidade, mas com uma invasão de música e alegria:

O morro não tem vez
E o que ele fez
Já foi demais
Mas olhem bem vocês
Quando derem vez ao morro
Toda a cidade vai cantar

O favelado sempre dá o um jeitinho para compensar as dificuldades, diz Zé Keti, em Opinião (1964): 

Podem me prender
Podem me bater
Podem, até deixar-me sem comer
Que eu não mudo de opinião
Daqui do morro
Eu não saio, não
Se não tem água
Eu furo um poço
Se não tem carne
Eu compro um osso
E ponho na sopa
E deixa andar
Fale de mim quem quiser falar
Aqui eu não pago aluguel
Se eu morrer amanhã, seu doutor
Estou pertinho do céu

Mas o processo de degradação urbana é incontrolável e a poesia não resite ao tiroteio. O morro aponta o dedo para a cidade em Sou Produto do Morro (Eliezer da Ponte e Walter Coragem, 1983), em que a desculpa “sociológica” quer explicar a opção do correria: 

Sou produto do morro
Por isso do morro
Não fujo e nem corro
Sou produto do morro
Sem pedir socorro pra ninguém
Embarquei no asfalto
Da cruel sociedade
Que esconde mil valores
Que no morro tem
Tenho pouco estudo
Não fiz faculdade
E atestado de burro
Não assino também

A deterioração das relações do morro com a cidade chega ao século XXI à beira do confronto final, no samba O Dia em que o Morro Descer e não For Carnaval (Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro, 1995): 

O dia em que o morro descer
E não for carnaval
Ninguém vai ficar pra assistir
O desfile final
Na entrada rajada de fogos
Pra quem nunca viu
Vai ser de escopeta, metralha
Granada e fuzil
(é a guerra civil)

Em Rap das Armas (MC Cidinho e Doca, 2007), que fez parte da trilha do filme Tropa de Elite, a sublimação da miséria e exaltação às belezas do lugar finalmente cedem espaço à apologia da marginalidade, numa metralha onomatopaica que fere de morte a esperança e, de quebra, a gramática: 

Parapapapapapapapapapa,
Parapapapapapapapapapa,
Papara papara papara clack bum,
Parapapapapapapapapapa!
Morro do Dende é ruim de invadir,
Nóis com os “alemão” vamos se divertir.
Porque no Dende eu vou dizer como que é,
Aqui não tem mole, nem pra D.R.E.

Enquanto o Armagedon não chega, em Quantos morros já subi (Mario Sergio/Arlindo Cruz/Pedrinho da Flor), o sambista tenta barrar o Caveirão e segurar a onda dos correrias, mostrando que lá em cima nem tudo é espinho:

Quantos morros já subi, desci sem ver
O que falam por aí me faz tremer
Essa gente vive assim sem reclamar
Lá ninguém é tão ruim
Lá também se sabe amar (…)
Esse povo que a sociedade
Chama de fora da lei
Vive com dignidade
Sem levar vida de rei

A novela continua. E as cenas dos próximos capítulos podem não ser tão agradáveis, se o lado lírico do morro desmoronar sob uma enxurrada de balas perdidas.