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O som admirável do baiano-argentino Ramiro Musotto

Por Lauro Lisboa Garcia* - 10/06/2008

“Um pedaço de arame, uma cabaça, um arco de pau. É admirável o que o percussionista, compositor e produtor Ramiro Musotto, o mais baiano dos argentinos, extrai da combinação sonora desses três materiais que compõem o berimbau. Mais espantoso ainda é quando junta seis desses instrumentos, cada um afinado num tom, criando uma melodia com duas notas, como o fez na faixa de abertura de seu segundo álbum-solo, Civilizacao & Barbarye, que sai agora no Brasil. Ronda, a faixa em questão, é um exemplo evidente da constante capacidade de reinvenção do músico. Como seu inspirador, o pernambucano Naná Vasconcelos, ele redimensionou esse instrumento rústico de recursos limitados, mais conhecido na marcação do ritmo da capoeira.

Musotto reafirma que melódica e harmonicamente o berimbau é limitado, mas defende sua riqueza de timbres - que é por onde faz a ligação com a sofisticação de recursos da música eletrônica. "Há milhões de nuances tímbricas em uma única nota. Você pode evoluir por aí também, não só na questão harmônica e melódica", diz Musotto, que usou um capotraste parecido com o dos violões como "truque" para extrair as duas notas afinadas do instrumento.

Lançado no final de 2006 na Argentina, Civilizacao & Barbarye foi bem-recebido pela crítica de diversos países, incluindo o Brasil. Inspirado no ensaio político Facundo - Civilização e Barbárie, de Domingo Faustino Sarmiento, o título chama a atenção pela nova grafia, globalizante, sem acentos e sinais gráficos específicos, facilitando a leitura em diversos mundos - assim como a música que ele representa: de conformidade entre contrastes, multiplicidade de sons e amplitude de entendimento. "Esse título tem a ver com o trabalho que faço. O livro é uma análise sociológica da história argentina, aborda todos os conflitos, desde a conquista do deserto até a imigração. Minha música é uma mescla de cantos tribais afro-americanos com soluções tecnológicas", exemplifica.

Gravado em Salvador, Estocolmo, Grenoble e no Rio, o CD é uma expedição multirracial que surpreende e reflete em cada uma das dez faixas as convicções políticas e sociais do autor diante dos problemas da América Latina. De sonoridade mais acústica que Sudaka, mas se valendo de mecanismos da eletrônica, é uma brilhante evolução de seu álbum de estréia-solo, de 2004, que também carregava um forte significado no título. Sudaka é a expressão que os europeus usam para se referir, de maneira pejorativa, aos sul-americanos.

Civilizacao & Barbarye une cantos de crianças indígenas guaranis com discurso zapatista, sons rituais de candomblé, leva um choro de Jacob do Bandolim (Assanhado) para o lado do eletro-samba com cavaquinho, mistura referências do cangaço e da tradição africana, reutiliza um antigo tema cubano, Yambú (dos Muñequitos de Matanzas), põe guitarra de acento afro-caribenho em chula do Recôncavo Baiano (M'Bala). Há também a presença significativa de diversos parceiros de composição e cantores de Cuba (Léo Leobons), EUA (Arto Lindsay), Argentina (Santiago Vazquez), Irã (Rostam Miriashari), Bahia (Lucas Santtana), Paraíba (Chico César) e Suécia (Sebastian Notini), entre outros.

Identificar alguma semelhança entre seu estilo e do franco-espanhol Manu Chao – no processo de criação, na estética e na consciência social –, não é nenhum desvario. Ele próprio admite que ambos são da mesma tribo, mas Manu não desenvolve a diversidade rítmica que se denota no trabalho de Musotto. Uma das conexões entre eles é o mexicano Subcomandante Marcos, do Exército Zapatista de Liberação Nacional. Como Manu, Musotto sampleou trechos de um discurso do líder rebelde e o inseriu numa das mais interessantes faixas do CD. Trata-se de Gwyra Mi, que tem marcação de capoeira, levadas de samba-reggae (do qual Musotto é um entusiasta) e as vozes de crianças indígenas da tribo guarani Tenondé Porã, que vivem no Morro da Saudade, em São Paulo. Outra das faixas mais curiosas é Nordeste & Béradêro, que traz o paraibano Chico César cantando um aboio de sua canção, interposto a trechos de gravações extraídas do LP Cantigas de Lampião (1957), gravado por um ex-integrante do bando do cangaceiro, Volta Seca.

O samba-reggae – hoje tão diluído entre os oportunistas da axé music – entrou de maneira natural para a usina sonora de Musotto, cuja história é marcada pela inquietação criativa e pela contundência de sua visão original da música. Criado em Bahía Blanca, na Argentina, Musotto, como ele mesmo diz, sempre foi "obcecado por estudar, pesquisar e entender" toda música que ouve. Radicado na Bahia preta desde 1984, fã de Naná Vasconcelos ("ele mudou a minha vida") já na adolescência, quando transitava entre grupos de rock e orquestras sinfônicas, o músico se mudou para São Paulo quando decidiu aprender a percussão brasileira.

Aqui estudou com Zé Eduardo Nazário e dois anos depois, em 1984, já se aventurava pelos trios elétricos, sofisticando a percussão baiana com seu know how e senso de disciplina. Musotto não apenas incorporou os ritmos baianos, como, em contrapartida, redefiniu o berimbau e o bater do tambor com ferramentas eletrônicas. Mas, como ele próprio observou, juntar ritmos tribais com beats e bytes pode dar em tremendo equívoco para os incautos. Com ele foi - e é diferente.

Não demorou para Musotto se tornar um dos mais solicitados percussionistas para gravações e shows de variados astros pop brasileiros. Sua marca pode ser conferida nos trabalhos de Lulu Santos, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Marisa Monte, Lenine, Daniela Mercury, João Bosco e uma infinidade de outros nomes. Em cada ficha técnica e artística, sua presença faz toda a diferença. Entre o moderno, a tradição e o eterno dessas bárbaras civilizações, ele rompe barreiras de preconceitos com ideal de pioneiro.”


*Crítico de música do jornal O Estado de S.Paulo.