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O múltiplo Alessandro Penezzi

Por Daniel Brazil - 16/11/2006

A retomada do choro ocorrida na virada do século XXI parece ter se firmado no cenário musical brasileiro. Mesmo ausente das rádios e TVs comerciais, frutificou nas rodas e nos bares, onde um espírito de criação e execução coletiva é valorizado. Vários selos independentes foram criados, juntando-se aos pioneiros Kuarup e CPC-Umes, e o público teve mais acesso a tarimbados músicos e talentos emergentes.

No Rio multiplicaram-se os bares com programação dedicada à música instrumental e ao choro. Em São Paulo, em menor proporção, alguns pontos se transformaram naturalmente em trincheiras, pontos de encontro onde jovens e veteranos chorões terçavam suas armas, em duelos de criatividade. Desde o histórico pólo de resistência da loja Contemporânea até alguns botecos da Vila Madalena, como o Café Du Rêve (Bar do Cidão) e o Ó do Borogodó.

Nesse bares, um violonista de Piracicaba, Alessandro Penezzi, em pouco tempo juntou uma legião de fãs. Tornou-se comum ver grandes músicos, de passagem pela cidade, chegarem de seus shows e atravessarem a madrugada no bar apinhado, só pelo prazer de tocar com o jovem instrumentista.

E Penezzi não negava fogo. Participou de centenas de rodas, revelando sua versatilidade no samba e no choro. De formação clássica (é bacharel em Música pela Unicamp), estendeu seu virtuosismo por vários instrumentos, tocando violões de 6 e 7 cordas, viola, violão tenor, cavaquinho, bandolim, pandeiro e flauta. Pra completar, cantava bem e conhecia um enorme repertório de sambas clássicos. Como diz o Yamandú Costa, “ainda por cima é bonito, o fiadaputa!”

Participou de vários grupos, e tocou com tanta gente do primeiro time que se fizermos aqui uma lista, vira catálogo telefônico. Em 2001 lançou seu primeiro disco, Abismo de Rosas. Formou o Trio Quintessência, violão, cello e bandolim, semifinalista do Prêmio Visa, com o qual se apresentou em vários países. Em 2003 passou a tocar com o Choro Rasgado, encontrando no mestre Zé Barbeiro um parceiro ideal para seus vôos instrumentais. Em 2005 lançaram o ótimo disco Baba de Calango, com choros inéditos.

O músico chega agora ao segundo disco autoral, que leva apenas seu nome na capa (Porã Produções, 2006). Se o primeiro ainda era um disco de instrumentista, este revela também um compositor e arranjador em sua plenitude. Com direção artística de Heron Coelho, o disco mostra a diversidade rítmica e melódica que Penezzi absorveu, desenvolveu e recriou com seus parceiros musicais. Há desde arranjos sobre pontos de terreiro até invenções próprias de cristalina beleza.

É curioso como a fronteira entre música instrumental e vocal tem sido driblada pela nova geração de instrumentistas. Cada vez mais é comum haver canções em discos instrumentais, e vice-versa. Essa saudável mistura vem sendo colocada em prática por Guinga há tempos, e vem encontrando seguidores. No disco de Penezzi, três canções levam letras de André Paschoal, e são interpretadas por Amélia Rabello, Beth Carvalho e o próprio autor. A faixa de abertura, Agradecendo, conta ainda com o vocalise de Nábia Vilella, atriz e cantora que costuma brilhar nas peças dirigidas por seu primo, Gabriel Vilella.

Os choros são impecáveis, desde o clássico ligeiro Nhô Quim até o moderno Papa-Goiaba, que lembra o paulista Esmeraldino. Lírico em Dayanna (com Yamandú Costa) e O Canto da Sereia (com os parceiros do Quintessência), inquieto no frevo Frevaricando (Com Milton Mori e Arismar do Espírito Santo), Penezzi atinge um alto grau de virtuosismo musical na homenagem Be-a-Baden, faixa-solo impregnada pelo estilo impetuoso do homenageado.

Há também recriações surpreendentes no disco. Madrugada, de Zé Kéti, é acompanhado por palmas, guitarra flamenca, improvisos em cante flamenco e jaleos, trilha sonora para uma noite ibero-carioca. Amigos do Samba, de Waldyr Azevedo, é tocado com entusiasmo em companhia de Charles da Flauta e o Quinteto em Branco e Preto. Todo Menino é um Rei tem as vozes dos filhos do músico, coro de tias baianas “paulistas” e Osvaldinho da Cuíca na percussão.

A facilidade de Alessandro Penezzi em juntar pessoas à sua volta, tocar em grupo e estabelecer conexões musicais sempre enriquecedoras foi reproduzida no estúdio. Com esse trabalho, o músico se reafirma entre os bambas, camisa titular na seleção brasileira do choro. Mestre instrumentista, inventor de belezas, caipira urbano universal, tradutor de muitos brasis.