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O litoral e o interior de Sérgio Santos

Por Daniel Brazil - 05/02/2010

“Quando o mar adormece, o sertão acorda”.

Um disco conceitual. Há muito tempo não embicava uma embarcação dessas na praia da música popular brasileira. Uma suíte que se propõe a contar uma história, descrever um conjunto de imagens ou sensações, amarradas pela música, com ou sem letras.

O responsável pelo feito é Sérgio Santos, mineiro que inventa uma paisagem diferente dos antecessores do Clube da Esquina. Milton, Lô Borges, Beto Guedes & Cia. viam o mundo quando abriam a janela lateral do quarto de dormir. E por ali entravam Beatles, literatura e poesia, tambores de mina(s), baladas universais.

Sérgio Santos, mineiro de Varginha, terra de ETs e visionários, enxerga outro Brasil. O Brasil de Tom Jobim, de Villa-Lobos, de praia e de sertão. É esse o mote, explicitado na faixa título: “De onde vem o canto mais puro, do litoral ou do interior?”

A resposta não é fácil, inda mais prum mineiro filho de alagoano com fluminense. Sérgio passava férias na praia, desde a infância. Como resolver este desafio? Quem é maior, Caymmi, Gonzaga ou Ary Barroso?

Em plena maturidade artística (e de vida), com absoluto domínio do seu instrumento – o violão -, autor de obra respeitável, com muitos elogios no embornal, SS nos presenteia com o passo mais ambicioso de sua vida. No sexto CD, criou a suíte a partir de um tripé instrumental: “O Mar Adormece”, “A Montanha Sonha” e “O Sertão Acorda”. Para ajudar na orquestração, chamou o amigo André Mehmari (nascido à beira-mar, hoje mora na montanha) que realiza aqui um dos seus trabalhos mais luminosos, lembrando Villa-Lobos em alguns momentos. Em outras faixas, conta com o auxílio luxuoso de Dori Caymmi e um time de músicos de primeira grandeza. E o próprio Sérgio se encarregou dos arranjos de conjunto, com muita competência.

Para as letras, nada menos que Paulo César Pinheiro, parceiro escolado, que aqui verseja cinco faixas. Há outras três composições sem letra (a jazzística Ciranda, a nostálgica Cinema Rio Branco e Batuíra, uma bossa-jazz encantadora).. Para arrematar, a voz sedosa de Mônica Salmaso é convocada para um dueto final, na faixa Mar, Montanha e Sertão (que curiosamente lembra Guinga em seus melhores momentos).

Por falar em voz, Sérgio está cantando cada vez melhor. Tocando muito. E compondo que nem... que nem... ora, que nem Sérgio Santos! De forma definitiva, o mineiro se posiciona como um dos maiores nomes da música popular brasileira contemporânea, naquele seleto grupo que inclui Edu Lobo, Egberto Gismonti, Francis Hime, e outros que exploram as fronteiras entre o popular e a música de concerto.

Ouvir e viajar na proposta musical de “Litoral e Interior” é experiência fascinante, que vai ficar cravada na alma de quem reconhece a força incontrolável das marés, o brilho da lua nas cachoeiras, o sertão virando mar. Tem muito Brasil esparramado pelo mapa, e poucas vezes essa imensidão teve uma tradução musical tão adequada.