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O dilema de Guinga

Por Daniel Brazil - 04/06/2007

Poucos artistas no mundo podem se gabar de serem tão incensados e afagados pela crítica como o carioca Carlos Althier de Souza Lemos Escobar, mais conhecido como Guinga. Seu último CD, Casa de Villa (Biscoito Fino, 2007) foi recebido com os melhores adjetivos pela imprensa especializada. “Genial” e “obra-prima” foram palavras recorrentes nas resenhas.

Perante a unanimidade, fica difícil fazer um comentário isento. Ao contrário de Nelson Rodrigues, acredito que às vezes a unanimidade pode estar certa. Quem se arrisca a falar mal de Dorival Caymmi, Drummond ou a seleção brasileira de 1970?

Mas o fenômeno Guinga é um caso incomparável e único na música brasileira. Um sujeito profundamente original, criador de melodias difíceis e harmonias complexas, apoiadas num domínio técnico do violão que o torna inimitável. Sua música também influencia os parceiros letristas, levando-os a construir versos sofisticados, pouco assimiláveis pelo povão (ou mesmo pela classe média amante de Chico, Caetano ou Vinicius).

Nesse CD, o próprio Guinga arrisca alguns versos, e curiosamente o círculo se fecha. Não sabemos mais quem influencia quem. A letra de Maviosa poderia ser assinada por Aldir Blanc, sem pudor. Esta contaminação parece ser fruto de um projeto estético comum, e mostra de forma direta a identificação que rola entre os parceiros.

Dois problemas emergem durante a audição de Casa de Villa. Um é velho conhecido de todos: Guinga não é um grande cantor. Embora tenha melhorado, em relação aos primeiros discos, falta muito para que seja considerado um bom intérprete. Sua voz parece sempre forçada, cantando um tom acima do confortável. O fato dele cantar 8 das 12 canções do disco pode afastar alguns amantes da eufonia vocal.

O outro problema é mais amplo, e dependendo do ângulo, pode até ser considerada uma falsa questão, ainda não totalmente delineada. Guinga surgiu como músico, excelente instrumentista, ligado às formas tradicionais do samba e do choro. É natural que como compositor procure uma face própria, um estilo inconfundível. Conseguiu. É um dos autores mais originais da música brasileira. Mas pagou por isso o preço do afastamento da canção popular, do sucesso de público.

Suas composições cada vez mais buscam o erudito, e a influência de Villa-Lobos não é ocultada. Os arranjos flertam com a música de câmara contemporânea. Algumas canções parecem lieder modernistas, mais apropriados para as salas de concerto que para o quintal de uma casa de vila.

Será Guinga o sintoma maior do esgotamento das formas populares que dominaram nossa música até o final do século XX? Corre o risco de ficar congelado entre o popular e o erudito, visto com desconfiança pelos extremistas dos dois campos e admirado por um público cada vez rarefeito?

Dorival Caymmi declarou certa vez que o seu ideal artístico é compor uma ciranda que se identifique tanto com o povo que acabe virando peça popular, anônima, cantada por crianças e velhos, sem distinção.

Este lugar utópico da canção (e Caymmi certamente chegou muito perto disso!) não está presente nas ambições de Guinga. Seu ponto de fuga é outro. Acompanhar um samba de Cartola parece que ficou definitivamente no passado. Refinando e depurando seu modo de compor, entra naquele território onde se confundem, às vezes, estilo e repetição. Algumas construções melódicas já parecem familiares para quem conhece sua obra, certas canções e arranjos ecoam peças anteriores. No último disco, em conseqüência, isso se torna mais evidente.

Se, como sugeriu Chico Buarque, a música popular talvez tenha se esgotado como forma de expressão, é razoável supor que, fora dos esquemas comerciais, o caminho da elitização seja a única via? A meta apontada por Caymmi não é mais possível, nesses tempos em que a própria mídia gera formas espúrias e desenraizadas de cultura? Guinga é um agente provocador de mudanças ou apenas um reflexo desta situação? Para onde vai a música de Guinga, para onde irá a música popular brasileira, afinal?