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O cálice do Criolo Doido

Por Daniel Brazil - 21/07/2011

Não sou um fã de rap, confesso. Gosto demais de música pra gostar de rap, que originalmente nasceu como poesia ritmada (Rhythm and Poetry). Nada contra rimas e ritmos, mas na origem do gênero faltavam alguns elementos básicos para minha fruição, como melodia ou harmonia. Também não sou fã de poesia declamada, mas respeito quem faz e curte. Na Rússia é arte nacional, cultuada por milhões de pessoas, em escolas, botecos e saraus.

Acompanhei o surgimento do movimento hip hop na periferia de São Paulo e do ABC, há mais de vinte anos (gravei um vídeo com Nelson Triunfo em 91!), e sempre vi como socialmente interessante e musicalmente pobre. Claro que surgiram alguns bons poetas no meio, e os Racionais foram um marco cujo impacto é definitivo. Gente como Thaide, Rappin’ Hood, Gog ou MV Bill são mentes inquietas que ampliam os caminhos do rap. Alguns “brancos espertos” surfaram na onda, como Gabriel o Pensador ou Fausto Fawcett, deixando sua marca.

Gosto muito do filme Antônia (2007), de Tata Amaral, que levou Negra Li ao estrelato e mostra o lado feminino do rap. O que sempre me incomodou foi a submissão acrítica ao modelo americano de rap. A imitação dos trejeitos, dos scratches, dos passos de break, das roupas, colares e óculos escuros.

Há alguns anos ouvi falar de Criolo Doido. Ativista do rap , criou a bem sucedida Rinha dos MC’s, em São Paulo, que virou circuito em todo o estado. Lançou um disco em 2006 (Ainda Há Tempo), e entortou a cabeça do pessoal com Nó na Orelha, de 2010.

Gostei de umas faixas, menos de outras. Espiei alguns vídeos na rede, e a cara de Criolo (que não é literalmente um crioulo) foi ficando familiar. Até que topei com este vídeo, gravado em condições precárias, num bar, sem playback, em que o poeta faz uma homenagem à canção Cálice, de Gilberto Gil e Chico Buarque.

Na verdade, ele canta outra letra, sobre a mesma melodia, sem respeitar muito a métrica. E me arrepiei do mesmo jeito que havia acontecido quando ouvi a canção original pela primeira vez. A voz embargada de Criolo, cantando a cappella, transmite tudo. E o fato de citar Milton, e não Gil, se deve ao fato da interpretação do mineiro (junto com o carioca) ter se tornado a referência auditiva para esta grande, imensa canção.

Criolo a tornou ainda maior.